Whigs and Stories: Herbert Butterfield and the Historiography of Science

Sessão de 24 Outubro 2007, Bruno Almeida.

Jardine, Nick,
"Whigs and Stories: Herbert Butterfield and the Historiography of Science", History of Science, vol. 41, part 2, number 132, June 2003, p. 125-140

Este artigo de Nick Jardine é dedicado a Herbert Butterfield. Na verdade dizer isto não é dizer tudo. O autor tem um duplo objectivo: por um lado voltar a reflectir sobre as ideias de Butterfield acerca da interpretação whiggish da HC e por outro fazer um paralelo, se possível, para a história da ciência tal como é praticada nos dias de hoje.

O artigo começa com uma confissão do próprio autor em relação ao seu precário conhecimento passado da obra de Butterfield: uma das suas principais noções era de que tinha sido Butterfield a introduzir, no seu livro The Whig interpretation of history (1931), o termo whig para caracterizar um tipo de visão histórica anacronista e com franca apetência para glorificar os actores históricos. Outra das informações sobre o importante historiador britânico era sobre a sua posição (veiculada no livro The origins of modern science) em relação ao papel da (designada) revolução científica dos séculos XVI e XVII ao declara que esta “eclipsava todos os acontecimentos desde o aparecimento do cristianismo”. Na posse de pouca informação sobre os escritos e ideias de Butterfield esta era, desde logo, para Jardine uma posição presentista. Outras questões intrigaram Jardine: o porquê de os termos introduzidos por Butterfield (whig, internalista, positivista ou triunfalista) terem pouco eco na comunidade dos historiadores ditos normais ou generalistas e o porquê de, nos anos 70 e 80, esta visão da análise histórica ter tido um novo fôlego por parte dos historiadores da ciência. E por ultimo, teriam as ideias e observações de Butterfield sentido para os HsC de hoje em dia? (Confesso que Jardine sabia e já se tinha questionado muito mais sobre o assunto do que eu).

Num primeiro estudo, confessadamente superficial, Jardine reparou que poucos historiadores mainstream da altura passaram a usar as categorias de Butterfield. Além do mais, Butterfield parecia não ter notado que muitos dos problemas da analise também eram válidos para os escritos de tendência mais conservadora e/ou católica. De facto, Jardine também constatou que os termos whig e whiggish já eram usados na historiografia geral, cerca de 4 décadas antes de Butterfield, para caracterizar uma tendência histórica de heroificação das instituições inglesas e do progresso que conduziu ao seu sistema parlamentar. Tudo isto fazia já parte de uma certa tradição analítica que deixava clara a diferença entra uma história presentista e uma outra, por assim, dizer “histórica”. Termos como anacronismo eram já usados para caracterizar textos que localizavam as coisas fora do seu lugar histórico ou que tratavam os actores históricos prolepticamente.

No que diz respeito à história da ciência, Jardine não detectou continuação das ideias de Butterfield nas 3 décadas que seguiram a publicação da WIH. Um dos primeiros ecos foi detectado por volta de 1961 numa resposta de Guerlac a um comentário de Laslett a propósito de uma comunicação do próprio Guerlac. Guerlac, um historiador da ciência, teria apelado contra a especialização da história da ciência e a favor da sua integração no corpo de investigação histórica geral. Laslett, um historiador social e demográfico, iria mais longe questionando a validade dos estudos histórico-cientificos com base na não existência de uma clara definição de ciência aquando da sua “criação” no século XVII e da falta de consciência dos próprios praticantes em relação à sua actividade na época. Deste modo a própria categorização de uma actividade como “cientifica” seria desde o princípio uma categorização anacronista – anacronismo conceptual.

Em meados dos anos 70, era comum encontrar a terminologia ligada a Butterfield e outras relacionadas em textos dos historiadores da ciência. Esta nova lufada estava, na opinião de Jardine, com a necessidade de credibilizar os estudos historiográficos ligados à ciência e à consolidação e profissionalização da disciplina: era separar o trigo do joio. Mas, como Jardine mostra, Butterfield, ao contrário dos “novos” HsC não estava minimamente preocupado com o uso da palavra ciência para caracterizar a actividade dos Galileus, Kepleres, etc. Por isso nas décadas de 70 e 80 os HsC criticavam a analise whig ligada ao anacronismo conceptual aplicado às narrativas de progresso. Pode até dizer-se que se gerou uma febre que exagerou os ataques às liberdades linguísticas que tendiam a associar disciplinas específicas aos seus heróis fundadores – algo que Jardine acaba por não condenar apesar de sugerir que a acontecer seja com o devido equilíbrio e bom senso.

2. O trabalho que Butterfield desenvolveu no WIH levanta uma série de problemas historiográficos. No segundo ponto deste artigo, o autor vai apresentar de uma maneira mais aprofundada, as características das ideias de Butterfield. Segundo Jardine, seguindo Butterfield: “Acima de tudo os historiadores deviam estudar o passado como um fim em si, procurando entender e “ressuscitar” as gentes do passado e os seus contributos. Na verdade, o historiador deveria ter a capacidade de entender estes agentes melhor do que eles próprios se entendiam, ao investigar as maneiras pelas quais os seus pensamentos foram inconscientemente condicionados pelas circunstâncias e ao explorar as “imprevistas” consequências do seu trabalho. Além disto, o historiador não deveria exercer papel de juiz do passado mas sim funcionar como uma espécie de mediador entre passado e presente, como uma testemunha acreditada”. A ideia basilar parecia clara: Butterfield aspirava a uma “História total” da civilização e para tal exigia um papel mais relevante para a Historia da Ciência. Assim, o primeiro passo a dar num estudo histórico da ciência é reconhecer e estabelecer a distância entre passado e presente (isto deve ser um principio universal). No seguimento, impõe-se um respeito absoluto pelas fontes e pela sua análise rigorosa. E, uma vez atingido o rigor, o historiador deveria apelar à sua imaginação, visões (insights) e elasticidade mental (pergunto se isto não são características subjectivas e assim presentistas, já que dependem de um observador no presente).

3. Aqui, Jardine examina alguns problemas apontados por Butterfield à interpretação whig da história da ciência. O primeiro diz respeito às relações entre a investigação histórica e o que é conhecido como história geral e é visto por Jardine como uma chave para entender Butterfield no WIH. Butterfield acentuava aqui a importância pedagógica da história generalista, o que para ele queria dizer um tipo de história que abrangia períodos vastos e assuntos por tópicos – uma espécie de big picture. Neste âmbito poderia enquadrar-se a interpretação de tendências whig já que esta se baseava em análises selectivas e criteriosas de personagens e situações.

Apesar das suas ideias concretas, alguns trabalhos posteriores de Butterfield foram acusados, eles próprios, de inconsistência e de conter passagens exemplares de historia whig: nomeadamente no período durante a II grande guerra, ao celebrar a aliança inglesa com a história. Na análise de Jardine, esta inconsistência tem pouco fundamento no que diz respeito às suas ideias sobre os métodos de fazer história. Como exemplo, no seu trabalho The englishman and his history, Butterfield destaca o contributo whig para uma certa maneira de ser inglesa no que respeita à moderação em politica ao mesmo tempo que compromete uma historiografia moderna – isto é, o que neste livro era importante enfatizar é a finalidade da análise histórica e não os seus métodos. Na verdade, a critica de Butterfield à historiografia whig não negava a importância do progresso mas sim a linha de análise histórica que o vê como uma manifestação social linear.

O segundo problema tem exactamente a ver com o reconhecimento do progresso em história. Uma observação interessante diz: “A história não é o estudo das origens; é mais é mais uma análise de todas as interposições pelas quais o passado vem ao presente.” E, claro está, são estas mediações que são propícias a ser interpretadas de maneira whig: vendo por todo lado obstáculos ao progresso só ultrapassados por indivíduos e instituições talhadas como heróicas. Quanto aos factos que Butterfield considera como originadores de transições sobressaem as intersecções entre adversários, ao contrario das interpretação whig que só considera a acção dos progressistas sobre os inimigos do progresso. Butterfield também vai um pouco além das visões de carácter um pouco mais sociológico, como as visões marxistas, afirmando que nem tudo depende da motivação humana, por si só um fenómeno complexo. A sua sugestão passa pela concentração do historiador no que ele chama, “momentos pivot” e “detalhes significativos”.

O último dos problemas tem a ver com “os limites da história enquanto estudo e particularmente com a tentativa dos whig de lhe dar uma finalidade que ela própria não tem”. Butterfield sugere que mal o historiador ponha de lado as categorias whig e comece a apreciar a complexidade e “acaso” históricos (lembro aqui que Butterfield assentava muito da sua formação pessoal na acção da divina providencia), será possível ver-nos e aos nossos preconceitos espelhados na história que fazemos. No entanto, Butterfield nunca sugere a possibilidade de descartar totalmente os nossos preconceitos no interesse de uma análise desapaixonada do passado. Mesmo estes erros crassos, que são parte integrante da personalidade do historiador, têm o seu lado positivo já que motivam a perscrutação do passado e os estudos históricos. Na interpretação do autor, Butterfield via a história como um “arte” na qual as operações cruciais interpretação, selecção e narração eram uma questão de aptidão e não um procedimento regrado ou dogmático.

4. Jardine advoga que, obviamente, muito do que Butterfield defendeu no passado, principalmente no trabalho de 1931, pode hoje ser considerado datado e sem sentido. Para Jardine a maior excentricidade é a obsessão de Butterfeild com a acção da "Divina Providência", fruto, muito possivelmente, da sua formação pessoal. Jardine revela que o interesse de ler o socrático professor Butterfield reside na facilidade com que ele problematiza as assumpções tácitas que estão por detrás das várias práticas históricas e afirma que não adianta ler Butterfield como um livro de receitas de como conseguir a boa análise historiográfica. Mas a leitura que Jardine fez dos problemas identificados por Butterfield tem bastante eco nos nossos dias. Se não veja-se: o primeiro dos problemas de Butterfield mantém-se ainda actual na questão de se é legitimo apontar baterias de estudos às big pictures do desenvolvimento científico. A este propósito a passagem de Secord revela um desfasamento entre as tendências historiográficas actuais e a imagem pública da disciplina. Revela também que apesar de todo o esforço de destruição da maneira presentista de ver a história se estabeleceu um ciclo de auto-alimentação já que há ainda muitos estudos dedicados a criticar estas visões.

Em relação às ideias de Butterfield das transições históricas e à versão whig desta dinâmica, Jardine sugere que o foco deve recair sobre as mudanças que se dão na própria problemática científica ao longo da história, sendo assim possível apresentar a big picture e ultrapassar a divisão externalismo/internalismo.

Para nós estudantes e futuros profissionais da disciplina a ideia de não ser anacrónico, presentista ou whig, é-nos (ou deveria ser) incutida desde o princípio – o HC deve fugir disto como diabo da cruz. Mas, curiosamente, Jardine sugere que uma total ignorância das ferramentas científicas do presente quando se analisa o passado conduziria a uma paralisação historiográfica (questão para discutir). Jardine afirma que uma lição deve ser retirada do trabalho de Butterfield: discernimento em relação ao presentismo. Isto é, um pouco como tudo na vida, a analise histórica presentista não deve ser evitada a todo o custo mas sim equilibrada a todo o custo.

Em relação ao 3º problema de Butterfield, Jardine sugere que não há que usar a ideia de que tudo faz parte de um plano universal e divino para manter o cepticismo e distância histórica. Por outro lado é de admirar a posição de Butterfield ao defender o papel inevitável das paixões e preconceitos na interpretação histórica. Jardine assume que a questão está em fazer-se um bom uso da teoria de analise historiográfica sem enfatizar demasiadamente as diferenças humanas ou cair em estudos culturais duvidosos.

Por fim, surge a questão da postura moral do historiador. Muitos dos HsC de hoje preferem adoptar uma posição quase insensível de modo a não só facilitar mas de alguma maneira legitimar a sua própria investigação. Mas, ao contrário do que se supõe das ideias de Butterfield, Jardine lembra a sua forte visão moralista da história. Ao contrário da visão complacente da corrente whig, Butterfield defendia uma análise critica ao próprio presente e aos próprios praticantes da HC e esta é, na minha opinião, e penso que irá ser por muitos anos uma ideia chave da disciplina, talvez mesmo uma das suas maiores conquistas.