Tema: Big Picture em História da Ciência

Sessão de 19 de Março de 2013, Daniel Gamito Marques

Tema: Big Picture em História da Ciência
O tema deste Journal Club está relacionado com um assunto que me parece ser bastante importante no contexto da actual História das Ciências: a ausência de estudos globais e integradores do conhecimento produzido no âmbito da disciplina, ou, dito de outra forma, a ausência de uma “big picture”. Os artigos que propus para lançar o debate reflectem diferentes momentos da discussão do tema e as posições de alguns autores relativamente às estratégias que deverão ser seguidas para superar esta limitação da historiografia contemporânea.

Grandes narrativas e “whiggism”

Desde o final do séc. XIX, os estudos históricos sobre a evolução das ciências tiveram frequentemente intenções moralizadoras. Os investigadores procuravam construir grandes narrativas do desenvolvimento científico, cujos protagonistas eram homens extraordinários movidos por um ardente amor ao conhecimento, trazendo o progresso às suas sociedades e o melhoramento das condições de vida. Grandes homens de ciência como Newton, Lavoisier e Darwin, entre outros, eram representados como exemplo a seguir por qualquer aspirante a cientista que se prezasse, sendo implícita ou explicitamente elevados à categoria de homens superiores. No seguimento destas noções, os trabalhos sobre a história das ciências tendiam a apresentar, à boa maneira positivista, que o desenvolvimento económico, político e cultural das sociedades ocidentais, e sobretudo da sociedade europeia, se devia ao desenvolvimento tecnocientífico atingido e à aposta na ciência enquanto actividade privilegiada. A ciência era uma actividade que caminhava triunfalmente em direcção a um maior progresso e a par da evolução da sociedade. As duas guerras mundiais que assolaram e devastaram a Europa contribuíram de uma forma determinante para lançar fortes suspeições relativamente a esta atitude geral; a verdade, porém, é que a ideia de que o grande desenvolvimento científico e tecnológico do mundo ocidental tinha permitido ou catalisado uma maior prosperidade económica, a adopção de regimes políticos tendencialmente mais democráticos, e em alguns casos mesmo a produção de uma cultura superior às outras, continuou a marcar presença em grandes narrativas triunfalistas da história das ciências. Esta atitude simplista foi apelidada de “whiggish”, e durante a segunda metade do século XX vários autores criticaram os seus pressupostos e pontos essenciais, levantando-se polémicas acesas que, em alguns casos, vão até aos nossos dias.

A crítica pós-modernista

A partir dos 1970s, o aparecimento de uma nova corrente historiográfica, a microstoria (“microhistory”, micro-história), que privilegiava a análise de períodos temporais mais curtos e episódios mais delimitados temporalmente, bem como a crescente sofisticação das metodologias de análise historiográfica decorrente da especialização de subdisciplinas da História, e da própria História das Ciências, com destaque para as abordagens sociológicas, contribuíram para a crítica e o descrédito de narrativas “whiggish”, de pendor presentista. O desenvolvimento crescente da disciplina de História das Ciências, a multiplicação de estudos da área, e a especialização de profissionais em épocas históricas e áreas científicas particulares, contribuíram para o descrédito da capacidade que grandes narrativas históricas teriam para esclarecer a evolução da ciência ao longo dos tempos. Esta atitude é, de resto, a base da “condição pós-moderna” ou do “pós-modernismo” (uma das primeiras sínteses desta atitude pode ser encontrada na obra homónima de Lyotard, que foi publicada em 1979).

Onde pára a “big picture”?

Ainda que a salutar crítica a narrativas “whiggish” e a maior sofisticação historiográfica tenham contribuído para enriquecer a História das Ciências, a especialização de profissionais levou a uma fragmentação do conhecimento produzido no âmbito da disciplina. A ausência de uma narrativa globalizante e integradora da quantidade avassaladora de novos estudos que foram sendo produzidos durante a segunda metade do século XX fez nascer um sentimento de desconforto entre os historiadores das ciências: a sensação de que a unidade da disciplina se tinha perdido irremediavelmente e que seria difícil, ou mesmo impossível, voltar a formar uma narrativa sintética que pudesse pôr em evidência os principais factores que levaram à evolução da ciência até à sua forma actual. Em suma, perdera-se a “big picture”.

Diagnóstico e tratamento

A consciência de que voltava a ser necessária uma “big picture” que reunisse os resultados da profusão de estudos da historiografia das ciências numa narrativa mais abrangente, mas desta vez longe do pendor “whiggish” de outrora, manifestou-se de um modo expressivo a partir do final da década de 1980s. Como podemos notar no artigo de Charles Rosenberg (1989), que faz uma breve síntese daquilo que mudou durante os primeiros 75 anos de existência da revista Isis, começaram a aparecer propostas para superar esta situação. Rosenberg propõe que seria importante fomentar a escrita de artigos de revisão (reviews) sobre determinados temas específicos (exemplos: a Revolução Científica, a vida e obra de Darwin, Ciência e Império, conhecimento científico na Idade Média, etc.) que procurassem sintetizar qual o estado actual de determinadas áreas de investigação, proporcionando breves resumos que dariam aos investigadores não-especialistas da área em questão uma visão panorâmica que lhes permitiria ficar a par dos mais recentes desenvolvimentos na História das Ciências. A elaboração destes artigos de revisão (reviews, review articles) começava a praticar-se em áreas científicas que já tinham atingido um elevado nível de especialização (a título de exemplo, refira-se a posterior criação da série de publicações Nature Reviews em 2000, que conta presentemente com 15 publicações temáticas em cancro, genética, imunologia, microbiologia, etc.). Rosenberg também propunha que a historiografia das ciências deveria dedicar-se mais à exploração das relações entre ciência e política. O estudo da ciência praticada no âmbito de determinados contextos políticos poderia fornecer um denominador comum a diferentes estudos conduzidos por investigadores de âmbitos distintos, além de atrair a atenção do grande público.

A procura de uma “big picture”

Prova de que a perda de uma “big picture” na História das Ciências estava longe de ser colmatada é a quantidade de artigos onde o tema é discutido. C. Hakfoort (1991) faz uma excelente síntese daquilo que está em causa no artigo “The Missing Syntheses in the Historiography of Science”. Na sua opinião, nem mesmo os livros da então recente série Cambridge History of Science conseguem suprir a inexistência de “big pictures”. As obras deste género, onde se incluem outros títulos, como o Oxford Companion to the History of Modern Science, assemelham-se frequentemente a “mantas de retalhos”, limitando-se a apresentar artigos de revisão em determinadas áreas específicas (Zoologia, Botânica, Citologia, Anatomia Comparada), tópicos de investigação (Ciência e Género, Ciência e Império), ou conceitos (paralaxe, evolucionismo, oxigénio), sem apresentar uma verdadeira narrativa de síntese. Hakfoort reconhece a qualidade de cada um desses artigos individuais; na sua opinião, porém, eles são insuficientes porque não fornecem a tão necessária “big picture”. Hakfoort propõe que, para que os historiadores das ciências possam escrever uma verdadeira história “big picture”, ainda que seja necessário aceitar que não existe uma única narrativa que possa explicar satisfatoriamente a evolução das ciências, é possível escrever uma narrativa integradora e abrangente se os historiadores tentarem mostrar as várias práticas científicas que existiram ao longo do tempo e o modo como estas foram moldadas de acordo com as concepções socialmente aceites sobre o que deveria ser a filosofia natural/ciência em cada contexto histórico (ou, para usar a terminologia de Foucault, no contexto de cada episteme).

O artigo de Hakfoort não foi o único a discutir as causas e as consequências da ausência de “big pictures” na História das Ciências. Em 1993, um número especial da revista British Journal for the History of Science chamado precisamente “Big Picture” reuniu artigos de seis autores em torno desta questão, como James A. Secord e John V. Pickstone. Cerca de uma década mais tarde, em 2005, a revista Isis publicou um número especial dedicado a esta questão, chamado “The Generalist Vision in the History of Science”, com contribuições de autores prestigiados, como Robert E. Kohler e Steven Shapin. A recorrência deste tema mostra como a discussão em torno das orientações historiográficas necessárias a uma compreensão abrangente e integrada da História das Ciências está longe de se encontrar resolvida, reaparecendo periodicamente. Neste contexto, o artigo de David Kaiser (2005), “Training and the Generalist’s Vision in the History of Science”, fornece alguns dados interessantes para pensar este tópico. A sua singularidade reside nos elementos que o autor põe em evidência para explicar a perda de uma “big picture”, ou “generalist vision”. Para além da maior sofisticação das análises historiográficas e da popularidade de determinadas abordagens entre os historiadores das ciências, factores que são normalmente apontados como os mais importantes para a perda de uma “big picture”, Kaiser nota que a alteração dos requisitos exigidos aos estudantes para se tornarem historiadores das ciências, no seguimento da profissionalização da disciplina, catalisou e aprofundou a fragmentação da investigação numa miríade de estudos parciais e cada vez mais específicos. A necessidade de analisar fontes primárias que requerem estudos demorados levou a que, por um lado, as investigações se tornassem cada vez mais localizadas em contextos e períodos específicos, frequentemente decorrentes do tipo de fontes mais facilmente disponível aos estudantes (localism); por outro lado, a elaboração de obras de síntese (“big picture”) foi dificultada pela diminuição do tempo que os alunos têm disponível para conduzir grandes pesquisas e pela diminuição dos recursos monetários concedidos a essas mesmas pesquisas, o que está ainda directamente relacionado com o grande aumento de profissionais da área. Analisando o número de dissertações de doutoramento produzido nos EUA e no Canadá, Kaiser nota como entre 1988 e 1996 a taxa de produção atingiu os 14,5 doutoramentos/ano! Este valor é ainda mais significativo se repararmos que, como indica Kaiser, esta taxa de produção era onze vezes mais alta do que a taxa de produção de dissertações em outras áreas! À semelhança do que já acontecera em outras disciplinas científicas, o aumento de produção levou a uma especialização e fragmentação da História das Ciências. Apesar do tipo de fontes passíveis de serem analisadas historiograficamente ter aumentado, o que é aliás vantajoso para a compreensão da evolução das ciências, a disciplina acabou por fragmentar-se em pequenos grupos de interesse altamente especializados e entre os quais é não raras vezes difícil estabelecer pontes de contacto e uma linguagem comum.

Desafios futuros

Apesar desta crescente especialização, Kaiser mostra que a História das Ciências continua a ser uma disciplina de grandes assimetrias: mais de dois terços das dissertações produzidas versam os séculos XIX e XX, e metade destas dissertações analisam os contextos americano e britânico. É claro que esta assimetria pode ser compreendida se atendermos ao grau de profissionalização, desenvolvimento e tradição científica da História das Ciências nestes países, bem como aos interesses pessoais dos seus investigadores; esta constatação, porém, não elimina a existência de grandes assimetrias que contribuem para a ausência de uma “big picture”.

Daniel Gamito Marques