Memoirs of the Lisbon Academy of Sciences

Sessão de 7 de Abril de 2009, Ana Patrícia Martins

Luis Manuel Ribeiro Saraiva,
"
Mathematics in the Memoirs of the Lisbon Academy of Sciences in the 19th century",
Historia Mathematica, vol. 35, 2008, p. 302-326


O autor apresenta uma avaliação sobretudo estatística dos trabalhos matemáticos publicados, durante o século XIX, num periódico específico: as Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, editadas em três séries (Primeira série: 1797-1839; Segunda série: 1843-1856; Nova série: 1854-1903+). A vitalidade das Memórias é analisada ao nível do volume de artigos matemáticos, em comparação com os de outras áreas, das mudanças verificadas nos temas tratados, da caracterização dos seus autores e do impacto causado na comunidade matemática europeia.

A análise da produção matemática inserta nas Memórias justifica-se pelo facto de a Academia das Ciências de Lisboa ser, desde os finais do século XVIII e até 1877, a principal instituição responsável em Portugal pela publicação de periódicos científicos contendo artigos matemáticos. O ano de 1877 assinala o início de “uma nova era” para a matemática produzida no país, com a fundação do “inovador” Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas, pelo eminente matemático Francisco Gomes Teixeira.

Numa primeira secção, Luís Saraiva faz uma caracterização do estado de adiantamento das matemáticas em Portugal, no século XIX, centrando-se em dois aspectos: trabalhos matemáticos produzidos e instituições responsáveis pela promoção da matemática, através do seu ensino ou investigação. Os dados compilados por Rodolfo Guimarães na obra Les Mathématiques en Portugal au XIXe siècle, de 1900 e aumentada em 1909 (obra que, pela sua catalogação demasiado heterogénea de assuntos matemáticos, deve merecer da parte do leitor uma análise cuidada), permitem ao autor agrupar a produção nacional, distribuída por temas, em três épocas: primeira metade do século XIX, terceiro e último quartéis do mesmo século. Cita ainda instituições e publicações relevantes para o progresso das matemáticas, distribuídas apenas por três cidades do país. Em Coimbra, a Universidade e a academia científica, literária e artística Instituto de Coimbra (1852), responsável pelo periódico O Instituto. No Porto, a Academia Politécnica do Porto (1837), sucessora da Academia Real de Marinha e Comércio da Cidade do Porto. Em Lisboa, destacam-se: a Academia das Ciências de Lisboa, responsável pelas Memórias (1797) (até à década de 1850 o único periódico científico contendo artigos matemáticos) e ainda pelos periódicos Bulletin (1851), Annaes das Sciencias e Lettras (1857-58) e Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes (1866); a Escola do Exército (1837), sucedendo à Academia Real de Fortificação Artilharia e Desenho; a Escola Politécnica (1837), sob a responsabilidade do Ministério da Guerra, suprindo a Academia Real de Marinha; e a Escola Naval (1845), sucessora da Academia Real dos Guardas Marinhas. Indica também a Revista de Obras Públicas e Minas (1871) criada pela Associação dos Engenheiros Civis e, finalmente, o já mencionado Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas (1877) de Gomes Teixeira.

A reduzida produção matemática verificada na primeira metade do século XIX (época em que os militares são o “grupo dominante” entre os matemáticos), o ligeiro aumento a partir da década de cinquenta, seguido de um extraordinário acréscimo no último quartel do século, devem ser avaliados não só pela dinâmica das instituições/periódicos em causa mas também pela conjuntura sociopolítica vivida em Portugal: destaquem-se a saída da Família Real para o Brasil (1807); as sucessivas invasões francesas (1807-1811) e ocupação do território nacional, e de Espanha, por França e Inglaterra; a revolução liberal (1820); a revolução de Setembro de 1836; seguidos do movimento de regeneração (décadas de 1850 e 1860).

No cerne do artigo, o autor aborda a dinâmica da publicação matemática das Memórias, evidenciando a percentagem de textos sobre matemática por oposição a outras áreas e descreve o decrescente dinamismo desse periódico ao longo do século XIX. Destaca o reduzido número de autores de trabalhos matemáticos, a quase inexistência de uma política de continuidade nas suas publicações e descreve as mudanças no seu perfil.

Fundada bem mais tarde do que as suas congéneres europeias, torna-se pertinente avaliar a intencionalidade da Academia das Ciências de Lisboa em inserir as Memórias na rede internacional, já estabelecida, de publicações sobre matemática superior. No que respeita ao posicionamento das Memórias no contexto europeu, Luís Saraiva argumenta que parece não ter existido semelhante política por parte da Academia, atendendo, por um lado, à pouca acessibilidade da língua portuguesa na qual são escritos a quase totalidade dos artigos (menos de 5% são escritos em língua estrangeira) e, por outro, à ausência de indícios de contactos científicos activos com autores estrangeiros (apenas três escreveram nas Memórias durante o período analisado, de 106 anos). Conclui também ser praticamente inexistente qualquer influência dos escritos de matemáticos portugueses na comunidade matemática internacional. Para tal, reporta-se à publicação ou correspondência de matemáticos portugueses com periódicos científicos estrangeiros (como excepções refere Garção Stockler e Manuel Pedro de Melo) e a alguns periódicos fundados no estrangeiro por portugueses que se viram forçados no século XIX a sair do país (destacando O Investigador Portuguez em Inglaterra).

Pese embora este cenário, indicando uma “incapacidade” dos matemáticos portugueses em “participar activamente” na comunidade matemática internacional, o autor recorre a artigos das Memórias para defender a tese de que alguns deles conheciam os desenvolvimentos actuais da matemática europeia, no que respeita aos assuntos que investigavam. Descreve sucintamente essas cinco memórias contendo resultados avançados mas que ficaram desconhecidas dos matemáticos de outros países: José Monteiro da Rocha sobre a determinação de órbitas (tomo II, 1799, p. 402-479); José M. Dantas Pereira estuda a velocidade de convergência de séries (tomo II, 1799, p. 168-186); Francisco Simões Margiochi sobre critérios de convergência (tomo III, parte II, 1814, p. 27-60); João Evangelista Torriani prova que seguindo o método de Wronski equações de grau superior a três não se podem resolver (“Memória premiada [...]”, tomo VI, parte I, 1819, p. 33-50); Francisco Simões Margiochi sobre a resolução de equações de segundo, terceiro e quarto grau sem segundo termo (tomo VII, 1821, p. 317-349); e Daniel Augusto da Silva com dois trabalhos, um sobre a “rotação das forças [...]” (tomo III, parte I, 1851, p. 61-231) e outro a respeito da resolução de “sistemas de congruências lineares [...]” (nova série, tomo I, parte I, 1854, p. 1-163).

O autor fornece também pormenores sobre os sucessivos estatutos da Academia que determinam os procedimentos para a avaliação dos escritos a incluir nas Memórias.

Estabelece uma breve comparação com o estado do progresso das matemáticas no século XIX em Espanha, muito embora não se refira às publicações da Academia das Ciências de Madrid, por não existir qualquer estudo publicado a esse respeito. Conclui que, apesar de o desenvolvimento das matemáticas nos dois países ter sido semelhante, houve pouco intercâmbio entre as suas comunidades de matemáticos, excepção feita ao último quartel do século XIX. Para tal contribuíram, não as Academias das Ciências de Lisboa e de Madrid mas os matemáticos Gomes Teixeira e García Galdeano com os periódicos por si fundados (Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas e El Progreso Matemático).

Em jeito de conclusão, Luís Saraiva sublinha que, para além de as Memórias evidenciarem pouca actividade, no que respeita à inclusão de artigos matemáticos, é notória uma “falta de continuidade” na sua publicação. Insiste ainda na escassez de contactos internacionais e na inexistência de uma “estratégia de longo prazo” para inserir as Memórias num contexto internacional.
Comentário: A esse respeito, acrescente-se que no início da segunda metade do século XIX é clara a intenção da Academia das Ciências de Lisboa de reatar as relações, presumidamente abaladas, com as suas congéneres europeias. A intervenção, em 1857, do vice-secretário da Academia, Latino Coelho, é disso testemunho. Lê-se em acta de Assembleia Geral: “[…]as nossas relações com os corpos scientificos estrangeiros, por tanto tempo interrompidas, ainda depois da reformação da Academia [em 1851], haviam começado a renascer durante a gerencia d'elle vice-secretario […] a incerteza e confusão dos antigos registos da academia, […] a interrupção larga de toda a comunicação com as academias e institutos estrangeiros, datando as ultimas remessas dos nossos livros e memorias do anno de 1843, haviam tornado mui difficil a prompta renovação das relações academicas inter-nacionais.”: Academia das Ciências de Lisboa, Livro da Secretaria 31B [Actas das Assembleias Gerais], 21 de Dezembro de 1857.

Mesmo a nível nacional, a importância das Memórias foi diminuindo ao longo do século XIX. Não obstante, o prestígio, reconhecimento ou impacto das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa deve ser avaliado mediante os condicionalismos sociais e políticos vivenciados em Portugal. É desse modo que Luís Saraiva enfatiza a “importância crucial no contexto científico português” dessa publicação, realçando que durante meio século foi o único periódico português onde os matemáticos portugueses puderam divulgar as suas investigações.