Fifty years of The Structure of Scientific Revolutions, twenty-five of Science in Action

Sessão de 19 de Fevereiro de 2013, Pedro Raposo

AA.VV.,
Fifty years of The Structure of Scientific Revolutions, twenty-five of Science in Action
, (special issue). Social Studies of Science, vol. 42, nr. 3, June 2012

Aproveitando a coincidência entre as bodas de ouro da Estrutura das Revoluções Científicas e das bodas de prata de Science in Action (SiA), a conceituada revista Social Studies of Science (SSS) dedicou uma secção temática do número 42 de 2012 a estas duas obras e aos seus autores,1 convidando proeminentes historiadores, filósofos e sociólogos a pronunciarem-se sobre o seu impacto, actualidade e potencial para orientar novas investigações. O resultado é um conjunto de artigos bastante heterogéneo, onde encontramos manifestos de ruptura e continuidade relativamente a ambos os autores. De um modo geral, ressalta do conjunto que Kuhn é já, sobretudo, história, e que foi menos influente na História das Ciências (HC) do que poderíamos pensar. Kuhn surge aqui problematizado sobretudo em termos do seu lugar na genealogia dos Science Studies, sendo a pretensa originalidade das suas propostas confrontada com o contexto em que emergiu a Estrutura e com as apropriações que Kuhn fez de ideias e conceitos que já estavam presentes noutros autores. Em consonância com a ordem cronológica das coisas, o mais recente SiA e o seu autor surgem aqui revestidos de muito maior actualidade, quer para os Science Studies quer para a HC (ainda que, note-se, os dois campos sejam, de um modo geral, tratados de forma indistinta). A primeira questão que se poderia colocar – se faz sentido, para além da coincidência das “bodas”, colocar as duas obras lado a lado – parece-me, por isso, pouco interessante, pois não carece de demonstração a grande influência de ambos os livros em foco, e até mesmo para o mais datado Kuhn não deixam aqui de surgir propostas no sentido de uma certa continuidade. 

Lynch & Mialet
Comecemos então por seguir Michael Lynch2 e questionar o que separa e aproxima os dois livros. Lynch, editor cessante da SSS, parece-me acertar ao apresentar a Estrutura e o SiA como sendo exemplificativos das próprias ideias que veiculam: Kuhn operou uma revolução no modo como abordamos a ciência o seu desenvolvimento histórico, e Latour foi indubitavelmente bem sucedido em construir uma amplo actor-rede para a sua abordagem. Lynch aponta também as semelhanças entre o conceito de matriz disciplinar (apresentado no posfácio à segunda edição da Estrutura) e o de actor-rede, assim como o facto de ambos os autores se terem servido de uma retórica revolucionária. No entanto, deixa em aberto a questão da agência, que assinala como o fulcro das diferenças entre Latour e Kuhn, e que por isso mesmo mereceria pelo menos uma discussão preliminar. Isso ajudar-nos-ia certamente a responder à questão contra-factual lançada por Hélène Mialet, “onde estariam os Science Studies sem Bruno Latour?”3, de forma mais concreta do que o faz a própria autora. Mialet, discípula de Latour, estende o exercício de aplicação de Science in Action ao próprio livro e ao seu autor, chegando mesmo a questionar se SiA não se tratare alimentar o capaz de gerar debate. assim um retarto mais va e autor toca na questas dos dois gigantes ocidentais como merameá, afinal, de uma autobiografia. Ou, poder-se-ia acrescentar, de uma espécie de autobiografia avant-la-léttre, de um projecto de vida intelectual que logrou ter uma concretização particularmente feliz. Também o texto o texto de Mialet é uma feliz sinopse biográfica, e até auto-biográfica, pois a autora é ela própria parte integrante do actor-rede de Latour. E ao desfiar a sua breve digressão reflexiva revela-se hábil em atenuar o compreensível tom encomiástico que lhe está subjacente. Apresenta-nos um Latour em contexto, assinalando interesses e divergências intelectuais, e personagens que o influenciaram, oferecendo-nos assim um retrato mais vívido do nascimento do SiA. Mas é obviamente noutras contribuições que temos que procurar o criticismo capaz de gerar e alimentar o debate.

Fuller
É interessante notar que, dentre os autores que contribuem para o conjuntoa, são os filósofos que parecem tomar as posições mais pragmáticas. Partindo de uma percepção de que uma difusa mas poderosa ordem neo-liberal se apoderou da academia, moldando os rumos à investigação universitária, Steve Fuller4 vem defender a abordagem de carácter normativo subjacente à subdisciplina que ele próprio promove, a epistemologia social. Kuhn e sobretudo Latour, se não os autores, pelo menos os livros em foco e a difusão e influência que tiveram, são apontados como culpados pela demonização da simples ideia de que a ciência, enquanto actividade intelectual, possa ser autónoma da sociedade em que se insere (ainda que, neste ponto, seja preciso ter em consideração que o próprio Kuhn apreciava a ideia das comunidades científicas isoladas – mas também Michael Lynch recorda que SSR e SIA foram apropriados e recontextualizados muito para além do que os próprios autores desejariam). Fuller critica especialmente a homogeneização ontológica operada por Latour que, fugindo a caracterizar a ciência como uma forma específica de actividade humana para a descrever essencialmente como um processo de extensão de redes, coloca num mesmo plano todos os entes (ou actores) envolvidos, humanos e não humanos. Uma tal concepção de ciência sobrepõe-se ao dualismo internalismo/externalismo apagando definitivamente do horizonte a simples possibilidade uma ciência orientada essencialmente pelos ditames da investigação desinteressada e do jogo intelectual da procura do conhecimento. A visão de Fuller reveste-se de um ostensivo idealismo (no sentido da defesa de um ideal de independência académica), mas o facto de muitos dos centros de investigação em STS e dos mais sonantes nomes da área se situarem presentemente em molduras institucionais orientadas para as questões dos mercados e dos negócios, não só dá força à sua crítica como confere pertinência à sua proposta normativa. Este é talvez um dos pontos que deverá merecer uma maior atenção na discussão: terão Kuhn e Latour, por força da difusão e impacto dos livros em análise, condenado condendenars em an umafessor que defende abertamente estas ideiass seu mangle, lgo evasiva eender a natureza como umapor força condenado condecondenado os Science Studies, incluindo aqui a HC, a submeterem-se a interesses e agendas exteriores ao mundo académico? Ou será o seu sucesso, para utilizar a expressão de Michael Lynch, auto-exemplificativo, na medida em ele próprio reflectiria essa promiscuidade entre o mundo universitário e tudo o que o rodeia? E nesse caso será possível quebrar o círculo? Mas importa também questionar se, uma vez que os Science Studies se prestam a conceptualizar uma ciência que interessa à ordem neo-liberal, não é isso também um projecto normativo? Nesse caso, o problema não está em tomar ou não uma abordagem normativa, mas antes na forma de normatividade que se escolhe. 

Turner
Stephen Turner5 aborda o modo como, ao “socializar”, sob a forma de paradigma, a ordem conceptual que o neo-kantismo defendia existir na física, Kuhn abriu caminho para o relativismo nos Science Studies, uma vez que o paradigma continha as suas próprias bitolas de sucesso, baseadas em premissas destituídas de efectivo fundamento racional. Quanto a Latour, Turner assinala que a teoria actor-rede “des-epistemologizou” o social e excluiu a explicação cognitiva da bateria de recursos a empregar no estudo da ciência, tendo Latour, colocado o foco na descrição, em detrimento das várias explicações alternativas que pretendia ultrapassar. Turner considera que as explicações fornecidas pela teoria actor-rede não chegam sequer a ser explicações, constituindo, na melhor das hipóteses, descrições. Neste ponto Turner parece confirmar o sucesso da estratégia defensiva de Latour que consiste afirmar que pretende descrever e não explicar. Mas o ponto importante a reter da crítica de Turner é a ênfase que atribui aos agentes da rede dotados de intencionalidade e às suas crenças sobre os factos sumarizados na descrição da rede, o que o autor toma como sinal de que é preciso voltar à epistemologia. Propõe então “epistemologizar” o social, de modo a compreender-se como se formam as crenças, o que implica conhecer quer os sujeitos, quer as rotinas institucionais em que estes se envolvem. Avisa que será necessário colocar questões politicamente incómodas – e.g., quando se deve acreditar nos especialistas, quando é que podemos confiar no processo de formação de consensos científicos. Mas uma vez que não nos deixa quaisquer pistas concretas sobre o modo de implementar a sua proposta de epistemologia social, perguntamo-nos até que ponto é que tem resposta esta questão igualmente incómoda – terão os próprios epistemólogos e filósofos da ciência algo de credível a dizer sobre estes problemas? 

Pickering & Collins
Apesar de as respectivas obras deixarem transparecer uma especial preocupação com essas questões, Andrew Pickering e Harry Collins optam aqui por se centrarem em Kuhn, adoptando uma postura ao mesmo tempo crítica e heurística. Numa curiosa fusão de paradigmas (que é também auto-exemplificativa da posição do autor) Pickering6 parte da noção taoista de que o mundo está em permanente fluxo para caracterizar os paradigmas como resultantes da procura de ilhas de estabilidade. Eae deve acreditar nos especilistasdeverm ser clocadas - quando stemologizou"para alçentntlmn Kuhn por Keoyr a natureza como umanfatiza a noção de “mundos diferentes”, mas apela a uma abordagem desta noção em que a diversidade nos modos de apreender a natureza é vista como uma possibilidade de inovação e adaptação, e não como algo negativo. Essa pretensa negatividade prender-se-ia com o problema da racionalidade – se os cientistas se convertem de um paradigma para outro (ou seja, mudam de mundo) de forma sobretudo intuitiva, então a mudança em ciência é um processo eminentemente irracional. Pickering faz uma abordagem ligeira e algo evasiva deste problema, mas escuda-se eficientemente na proposta de que a natureza permite vários modos de coexistirmos com ela, ao nível dos conceitos e sobretudo das práticas. Faz uma ostensiva apologia dessa diversidade, e da ciência enquanto adaptação a uma natureza em fluxo, ainda que pouco nos diga sobre o que perfaz a consistência interna de cada um dos mundos diferentes que invoca como exemplos. Mas uma vez que se serve do seu próprio trabalho, isto é algo a ser procurado nos seus textos de referência, e não neste breve comentário. De um modo geral, poder-se-ia dizer que Pickering assume uma postura neo-Kunhniana, dando mais ênfase às práticas e à materialidade do que aos conceitos, e substituindo a incomensurabilidade por um enfoque nas possibilidades de comunicação entre paradigmas. Resta saber se ainda tem alguma utilidade este Kuhn transfigurado, ou se não nos servirá melhor o actor-rede para descrever a formação destas ilhas de estabilidade. Claro que Pickering preferira, seguramente, o seu mangle,7 que é, em grande medida, ANT sob a forma de uma metáfora tecnológica. 

Também Collins8 opta por enfatizar a questão da comunicação. Começa por abordar o contexto em que a Estrutura foi escrita, apontando alguns trabalhos antecedentes, nomeadamente os de Fleck (que, diz-nos Collins, pensava como um cientista, de forma reflexiva), Wittgenstein, e sobretudo Peter Winch. A ideia-força que, segundo Collins, já estava presente nestes autores e que foi explorada por Kuhn é que os paradigmas são formas de vida em ciência. Não se pode separar um paradigma conceptual de um paradigma prático, porque na vida colectiva a ideia torna-se inseparável da prática. Apesar de relativizar o carácter inovador da Estrutura, Collins concede a Kuhn o mérito de ter desencadeado uma nova forma de pensar a ciência, e considera não só que não haveria ideia de incomensurabilidade sem Kuhn, mas também que esta ideia requer mais trabalho exploratório, constituindo uma importante linha de investigação a ser desenvolvida. Collins descarta a noção de “trading zones” empregue por Galison como um simples artifício linguístico para exprimir o facto de que indivíduos situados em diferentes paradigmas comunicam entre si; por conseguinte, deixa em aberto o modo como efectivamente se processa esta comunicação. E aí reside a possibilidade de ainda estendermos o que Kuhn aflorou na Estrutura

Dear & Jasanoff
Peter Dear e Sheila Jasanoff assinam dois dos texto mais fortemente críticos do lote. Dear9 dissocia-se do espírito celebratório do conjunto, argumentando que Kuhn teve pouca influência na história da ciência, e que algumas das questões centrais exploradas em Science in Action (nomeadamante a anulação da distinção entre epistemologia e ontologia) não geraram especial interesse entre os historiadores. Em vez de celebrar as duas obras e os seus autores, Dear salienta que estes já têm vindo a ser longamente celebrados - o que não constitui prova de influência, sendo esta, aliás, um fenómeno bastante difícil de avaliar, como aponta Dear. Se Harry Collins nos apresenta um Kuhn prosperando intelectualmente com recurso a ideias e conceitos previamente lançados por Finch e Wittgenstein, Dear acentua o apego de Kuhn por Koyré, cujo estilo de história intelectualista não coincide com a imagem habitual da Estrutura e do seu impacto. Segundo Dear, a Estrutura adquiriu um estatuto mítico nos Science Studies por ter afastado a filosofia da ciência do empirismo lógico e a sociologia da ciência do funcionalismo mertoniano, abrindo assim caminho aos trabalhos revolucionários de Donna Haraway e do próprio Latour. De resto, terá sido a filosofia da ciência o principal receptáculo da Estrutura. Note-se o contraste com Steven Fuller, relativamente à questão da autonomia das comunidades científicas. Fuller faz uma apologia do normativismo em prol da livre investigação, procurando, nessa linha, resgatar Kuhn das leituras que o colocaram na senda de uma ciência que não pode ser desligada dos seus contextos mais amplos. Já Dear apresenta a Estrutura como um eco do modelo de uma ciência livre e democrática que era propalado nos EUA durante a Guerra Fria, mas que, como o próprio Dear sardonicamente aponta, colidia com a realidade de um meio científico dependente de fontes externas de financiamento, e por mesmo sujeita a interesses vários. Este ponto deve ser visto à luz da recente polémica que opôs Peter Dear e Sheila Jasanoff a Lorraine Daston, a propósito da aproximação entre os Science Studies e a História da Ciência. Defendendo uma aproximação entre estes dois campos como uma forma de abordar o complexo entrosamento da ciência com sociedade, a economia e a política, Dear e Jasanoff contestam a proposta de Daston de uma reaproximação entre a história da ciência e a filosofia da ciência, que vêm como uma deriva intelectualista contrária a uma forma de estar na vida académica preocupada com o mundo que a rodeia. Ou seja, se de facto a vida académica não pode ser separada do mundo em que insere, mais vale assumi-lo e seguir precisamente por aí. Compreende-se assim o certo desdém com que Dear retrata um Kuhn fascinado com a ideia de comunidades científicas isoladas, e que tomou como modelo historiográfico a obra de um historiador interessado, acima de tudo, no conteúdo intelectual da ciência (Koyré). No entanto, se Dear parece estar certo ao relativizar a influência de Kuhn no modo como se tem vindo a fazer história da ciência, é menos convincente no modo como caracteriza a influência de Latour entre os historiadores, pois aborda o assunto em termos de questões conceptuais quando o grande impacto historiográfico de Latour reside, assim me parece, na pregnância dos artifícios idiomáticos que habilmente introduz em Science in Action: “centros de cálculo”, “acção á distância”, etc. Fosse pela influência do próprio Latour, ou simplesmente pelo progressivo esgotamento dos tópicos históricos centrados nas grande figuras, instituições e centros de produção, uma atenção cada vez maior a temas históricos em que a circulação, a comunicação, os impérios e os espaços coloniais, garante uma utilidade prolongada para o idioma latouriano, mesmo que os historiadores estejam pouco preocupados em discutir as questões conceptuais subjacentes a Science in Action. E sendo Dear um defensor da aproximação entre os Science Studies e a HC, é estranho não encontrar aqui um motivo de contentamento: pois se o idioma kunhiano se expandiu sobretudo para além das áreas disciplinares mais directamente relacionadas com a Estrutura, o idioma de Latour tem claramente uma forte presença na HC, consistindo portanto uma via de aproximação. 

Jasanoff10 reconhece plenamente esta pregnância idiomática, mas referindo-se aos Science Studies (ainda que aparentemente tome o campo como inclusivo da história da ciência, o que é coerente com a posição partilhada com Dear, e que acabo de referir). O artigo de Jasanoff é talvez dos que assumem uma posição reflexiva e crítica mais forte. A autora começa por caracterizar o número temático da SSS como um exercício de identidade de grupo, avançando depois para uma severa caracterização de Kuhn, em que este é retratado como detentor uma imaginação social pobre, que se reflecte quer na visão machista da ciência que oferece na Estrutura, quer na pouca importância que nessa obra (e no seu trabalho em geral) concede às interacções sociais. Se Kuhn deve ser invocado quando se traça a genealogia dos Science Studies, então deve sê-lo sempre juntamente com Fleck, que a autora apresenta não apenas como um percursor de algumas das ideias apresentadas na Estrutura, mas sobretudo como um pensador mais subtil, que se debruçou sobre as questões da subjectividade e da comunicação (poderíamos então dizer, inter-subjetividade), tendo inclusivamente mostrado alguma sensibilidade à questão do género. Também Latour é alvo de fortes críticas. Segundo Jasanoff, Latour não oferece senão uma abordagem de vistas curtas à complexidade da ciência. Isto porque, argumenta a autora, ao prescrever que devemos seguir os engenheiros e cientistas para analisarmos as controvérsias científicas, Latour coloca uma ênfase nos actores que negligencia importância da sociedade, da cultura e das instituições no desenrolar dessas mesmas controvérsias. E avança que devemos mesmo deixar de abordar as controvérsias em termos de quem ganha, e em vez disso questionar quem beneficia com o resultado das controvérsias, e para que fins. Ainda que use o termo apenas de forma tangencial, Jasanoff faz claramente uma apologia do seu idioma alternativo, dito de co-produção, que supostamente permitiria proceder a uma caracterização mais abrangente não só das controvérsias científicas mas de toda a complexidade das interacções entre a ciência, a tecnologia e os seus contextos sociais, políticos e económicos. Já discutimos este tema aqui no Journal Club11 e não resisto a reiterar que, ainda que concorde com Jasanoff relativamente à atenção alargada que devemos dar a estas interações, o seu idioma pouco parece trazer de novo. Percebe-se que autora quer vincar a sua influência (que já é enorme) nos Science Studies, e que a orienta uma clara noção de que triunfará quem apresentar o idioma mais pregnante. Mas não será o seu idioma da co-produção apenas mais um “fogo de artifício verbal”, expressão com que se refere indirectamente ao idioma latouriano?

Lagesene
Igualmente preocupada com questões de género está Vivian Anette Lagesene, que assina o que eu considero tratar-se da contribuição mais desinteressante de todo o conjunto. O seu texto transmite a sensação de ter sido escrito à pressa porque sim – era imperativo haver um artigo sobre Science Studies e género. Carece totalmente do fôlego crítico da maioria dos restantes textos e da graciosidade do encómio de Mialet, oferendo uma espécie de apologia ilustrativa que nem sequer se refere à obra de Latour em foco, mas antes ao mais tardio Reassembling the Social. Ainda assim, se a sua intenção era mostrar que, ao contrário do que apontam as críticas feministas, Latour lançou ideias importantes para os estudos de género, não fica claro em que medida em que estas ideas podem potenciar uma abordagem que permita avançar significativamente para além dos binários e essencialismos tradicionais. Lavesen parece, pelo contrário, mostrar que afinal Jasanoff tem razão quando fala de “fogo de artifício verbal”; o idioma latouriano servirá, afinal, para tudo aquilo a que se quiser aplicá-lo. E como talvez perguntasse Fuller – no fim de contas, explica o quê? 

Nakajima
Também a contribuição de Hideto Nakajima12 sugere ter sido incluída para que esta série de artigos fosse “academicamente correcta” – neste caso, para que não se veiculasse uma perspectiva exclusivamente ocidental. Mas o árido relato que Nakajima oferece acerca da história dos Science Studies no Japão e da introdução da Estrutura no seu país é decepcionante para quem o lê esperando encontrar alguma perspectiva refrescante. Mais importante do que a cronologia dos Science Studies no Japão, ou até do que a revelação de que Latour tem pouco impacto na cena académica nipónica, é seguramente o apelo do autor a uma nova orientação nos Science Studies, que permita lidar com fenómenos como os de Fukushima. Nakajima apresenta como missão para os Science Studies japoneses a criação de novas linhas conceptuais e metodológicas que possam fazer face ao que designa por “ciência real”. Há um indisfarçável toque nacionalista no modo como apela a este empreendimento, e como classifica as obras dos dois gigantes ocidentais como sendo essencialmente descritivas. No entanto, ainda que tamb e quaisquer proostas concretas oncretas , nte descritivas. Mas o autor toca na questas dos dois gigantes ocidentais como merameém não apresente quaisquer propostas concretas, parece-me relevante o reforço ao apelo pragmático presente noutras contribuições, não meramente no sentido de se promover a explicação em detrimento da simples descrição, mas sobretudo de transformar os Science Studies numa disciplina de intervenção. Uma profunda discussão em torno desta questão é seguramente uma boa forma de celebrar os 50 anos da Estrutura e os 25 de Science in Action

Notas:


 1 V. a introdução de Sergio Sismondo, ‘Fifty years of The Structure of Scientific Revolutions, twenty-five of Science in Action’, Social Studies of Science 42, 2012: 415. Não teço aqui qualquer comentário a este texto uma vez que se trata apenas da apresentação do tema.
2 Hélène Mialet, ‘Where would STS be without Latour? What would be missing?’, Social Studies of Science 42, 2012: 456.
3 Michael Lynch, ‘Self-exemplifying revolutions? Notes on Kuhn and Latour’, Social Studies of Science 42, 2012: 449.
4 Steve Fuller, ‘CSI: Kuhn and Latour’, Social Studies of Science 42, 2012: 429.
5 Stephen Turner, ‘Whatever happened to knowledge?, Social Studies of Science 42, 2012: 474. 
6 V. Andrew Pickering, The Mangle of Practice, University of Chicago Press, 1995, esp. pp. 22-7.
7 Andrew Pickering, ‘The world since Kuhn’, Social Studies of Science 42, 2012: 467.
8 Harry Collins, ‘Comment on Kuhn’, Social Studies of Science 42, 2012: 420.
9 Peter Dear, ‘Fifty years of Structure’, Social Studies of Science 42, 2012: 424.
10 V. Sheila Jasanoff, ‘The idiom of co-production’, in Sheila Jasanoff (ed.), States of Knowledge: The co-production of Science and social order, Routledge, 2004, pp. 1-12. 
11 Sheila Jasanoff, ‘Genealogies of STS’, Social Studies of Science 42, 2012: 435
12 Hideto Nakajima, ‘Kuhn's Structure in Japan’, Social Studies of Science 42, 2012: 462. 

Observation in the Margins, 500–1500 / K. Park

Sessão de 4 de Novembro de 2012, book-club


"Introduction: Observation Observed" / Loraine Daston e Elizabeth Lunbeck, p. 1-9
"Introduction: Part I. Framing the History of Scientifi c Observation, 500–1800", p. 11-13
"1 Observation in the Margins, 500–1500" / Katharine Park, p. 15-44

in Lorraine Daston & Elizabeth Lunbeck eds., Histories of scientific observation, (Chicago/London: The University of Chicago Press 2011).

Introdução

Daston e Lunbeck mostram porque é oportuno escrever a história da observação científica qua "categoria epistémica" de pleno direito (p. 2) e indiciam um caminho para o fazer. Primeiro perguntam porque é que esta história ainda não foi escrita até agora: apontam para duas razões. Primeiro, a observação seria uma coisa muito óbvia, omnipresente, de forma que esta história teria que englobar a história da ciência toda (p.1). A segunda razão seria que o papel da observação (supostamente passiva) foi desvalorizado relativamente ao papel da experimentação (supostamente ativa) durante os séculos 19 e 20. (p.3-5)

Por outro lado, o estudo da "observação" já está encaminhado por vários trabalhos: em sociologia histórica (Norbert Elias) e antropologia culural (Clifford Geertz). Ele pode orientar-se nos exemplos dos trabalhos de Raymond Williams e Michel Foucault que mostraram como o contexto histórico moldava aspetos da existência e vivência humana tidos por imutáveis (o corpo, a sexualidade). Outros estudos historicizavam os sentidos (Alain Corbin). Existe também já um corpus de literatura em história da ciência sobre a história da experimentação (importantes referências da nota no. 6) que tem várias características em comum com a observação científica (p.3):
  • a observação (tal como a experimentação) é uma forma de experiência altamente artificial e disciplinada
  • ela requer (tal como a experimentação) treinar os gestos e a mente
  • ela requer (tal como a experimentação) utensílios materiais
  • ela requer (tal como a experimentação) técnicas de descrição e de visualização
  • redes de comunicação e transmissão
  • critérios consensuais (canons) de evidência
  • formas especializadas de raciocínio.
Os autores fazem em poucos traços a historicização dos pressupostos filosóficos que postulam a observação como neutra e passiva. (p. 3-6) Feito isto, a "observação" apresenta-se como um tópico apetitoso de investigação histórica ("beckoning topic of historical inquiry").

A seguir, elas esboçam ainda a estrutura e a génese (um projeto MPIWG Berlin, 2006-2008) do volume. (p. 6-8)

What is the historiography of Technology about?

Sessão de 14 de Janeiro de 2011, Ana Paula Silva

David Edgerton,
Innovation, Technology, or History: What Is the Historiography of Technology About?,
Technology and Culture
, Vol. 51 No. 2, 2010, p. 680-697

Materiais:

Einstein in Portugal

Sessão de 22 de Maio de 2009, Pedro Raposo

Elsa Mota, Paulo Crawford and Ana Simões,
"Einstein in Portugal: Eddington's expedition to Principe and the reactions of Portuguese astronomers (1917-25)",
The British Journal for the History of Science,
Published online, 2008

Memoirs of the Lisbon Academy of Sciences

Sessão de 7 de Abril de 2009, Ana Patrícia Martins

Luis Manuel Ribeiro Saraiva,
"
Mathematics in the Memoirs of the Lisbon Academy of Sciences in the 19th century",
Historia Mathematica, vol. 35, 2008, p. 302-326


O autor apresenta uma avaliação sobretudo estatística dos trabalhos matemáticos publicados, durante o século XIX, num periódico específico: as Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, editadas em três séries (Primeira série: 1797-1839; Segunda série: 1843-1856; Nova série: 1854-1903+). A vitalidade das Memórias é analisada ao nível do volume de artigos matemáticos, em comparação com os de outras áreas, das mudanças verificadas nos temas tratados, da caracterização dos seus autores e do impacto causado na comunidade matemática europeia.

A análise da produção matemática inserta nas Memórias justifica-se pelo facto de a Academia das Ciências de Lisboa ser, desde os finais do século XVIII e até 1877, a principal instituição responsável em Portugal pela publicação de periódicos científicos contendo artigos matemáticos. O ano de 1877 assinala o início de “uma nova era” para a matemática produzida no país, com a fundação do “inovador” Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas, pelo eminente matemático Francisco Gomes Teixeira.

Numa primeira secção, Luís Saraiva faz uma caracterização do estado de adiantamento das matemáticas em Portugal, no século XIX, centrando-se em dois aspectos: trabalhos matemáticos produzidos e instituições responsáveis pela promoção da matemática, através do seu ensino ou investigação. Os dados compilados por Rodolfo Guimarães na obra Les Mathématiques en Portugal au XIXe siècle, de 1900 e aumentada em 1909 (obra que, pela sua catalogação demasiado heterogénea de assuntos matemáticos, deve merecer da parte do leitor uma análise cuidada), permitem ao autor agrupar a produção nacional, distribuída por temas, em três épocas: primeira metade do século XIX, terceiro e último quartéis do mesmo século. Cita ainda instituições e publicações relevantes para o progresso das matemáticas, distribuídas apenas por três cidades do país. Em Coimbra, a Universidade e a academia científica, literária e artística Instituto de Coimbra (1852), responsável pelo periódico O Instituto. No Porto, a Academia Politécnica do Porto (1837), sucessora da Academia Real de Marinha e Comércio da Cidade do Porto. Em Lisboa, destacam-se: a Academia das Ciências de Lisboa, responsável pelas Memórias (1797) (até à década de 1850 o único periódico científico contendo artigos matemáticos) e ainda pelos periódicos Bulletin (1851), Annaes das Sciencias e Lettras (1857-58) e Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes (1866); a Escola do Exército (1837), sucedendo à Academia Real de Fortificação Artilharia e Desenho; a Escola Politécnica (1837), sob a responsabilidade do Ministério da Guerra, suprindo a Academia Real de Marinha; e a Escola Naval (1845), sucessora da Academia Real dos Guardas Marinhas. Indica também a Revista de Obras Públicas e Minas (1871) criada pela Associação dos Engenheiros Civis e, finalmente, o já mencionado Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas (1877) de Gomes Teixeira.

A reduzida produção matemática verificada na primeira metade do século XIX (época em que os militares são o “grupo dominante” entre os matemáticos), o ligeiro aumento a partir da década de cinquenta, seguido de um extraordinário acréscimo no último quartel do século, devem ser avaliados não só pela dinâmica das instituições/periódicos em causa mas também pela conjuntura sociopolítica vivida em Portugal: destaquem-se a saída da Família Real para o Brasil (1807); as sucessivas invasões francesas (1807-1811) e ocupação do território nacional, e de Espanha, por França e Inglaterra; a revolução liberal (1820); a revolução de Setembro de 1836; seguidos do movimento de regeneração (décadas de 1850 e 1860).

No cerne do artigo, o autor aborda a dinâmica da publicação matemática das Memórias, evidenciando a percentagem de textos sobre matemática por oposição a outras áreas e descreve o decrescente dinamismo desse periódico ao longo do século XIX. Destaca o reduzido número de autores de trabalhos matemáticos, a quase inexistência de uma política de continuidade nas suas publicações e descreve as mudanças no seu perfil.

Fundada bem mais tarde do que as suas congéneres europeias, torna-se pertinente avaliar a intencionalidade da Academia das Ciências de Lisboa em inserir as Memórias na rede internacional, já estabelecida, de publicações sobre matemática superior. No que respeita ao posicionamento das Memórias no contexto europeu, Luís Saraiva argumenta que parece não ter existido semelhante política por parte da Academia, atendendo, por um lado, à pouca acessibilidade da língua portuguesa na qual são escritos a quase totalidade dos artigos (menos de 5% são escritos em língua estrangeira) e, por outro, à ausência de indícios de contactos científicos activos com autores estrangeiros (apenas três escreveram nas Memórias durante o período analisado, de 106 anos). Conclui também ser praticamente inexistente qualquer influência dos escritos de matemáticos portugueses na comunidade matemática internacional. Para tal, reporta-se à publicação ou correspondência de matemáticos portugueses com periódicos científicos estrangeiros (como excepções refere Garção Stockler e Manuel Pedro de Melo) e a alguns periódicos fundados no estrangeiro por portugueses que se viram forçados no século XIX a sair do país (destacando O Investigador Portuguez em Inglaterra).

Pese embora este cenário, indicando uma “incapacidade” dos matemáticos portugueses em “participar activamente” na comunidade matemática internacional, o autor recorre a artigos das Memórias para defender a tese de que alguns deles conheciam os desenvolvimentos actuais da matemática europeia, no que respeita aos assuntos que investigavam. Descreve sucintamente essas cinco memórias contendo resultados avançados mas que ficaram desconhecidas dos matemáticos de outros países: José Monteiro da Rocha sobre a determinação de órbitas (tomo II, 1799, p. 402-479); José M. Dantas Pereira estuda a velocidade de convergência de séries (tomo II, 1799, p. 168-186); Francisco Simões Margiochi sobre critérios de convergência (tomo III, parte II, 1814, p. 27-60); João Evangelista Torriani prova que seguindo o método de Wronski equações de grau superior a três não se podem resolver (“Memória premiada [...]”, tomo VI, parte I, 1819, p. 33-50); Francisco Simões Margiochi sobre a resolução de equações de segundo, terceiro e quarto grau sem segundo termo (tomo VII, 1821, p. 317-349); e Daniel Augusto da Silva com dois trabalhos, um sobre a “rotação das forças [...]” (tomo III, parte I, 1851, p. 61-231) e outro a respeito da resolução de “sistemas de congruências lineares [...]” (nova série, tomo I, parte I, 1854, p. 1-163).

O autor fornece também pormenores sobre os sucessivos estatutos da Academia que determinam os procedimentos para a avaliação dos escritos a incluir nas Memórias.

Estabelece uma breve comparação com o estado do progresso das matemáticas no século XIX em Espanha, muito embora não se refira às publicações da Academia das Ciências de Madrid, por não existir qualquer estudo publicado a esse respeito. Conclui que, apesar de o desenvolvimento das matemáticas nos dois países ter sido semelhante, houve pouco intercâmbio entre as suas comunidades de matemáticos, excepção feita ao último quartel do século XIX. Para tal contribuíram, não as Academias das Ciências de Lisboa e de Madrid mas os matemáticos Gomes Teixeira e García Galdeano com os periódicos por si fundados (Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas e El Progreso Matemático).

Em jeito de conclusão, Luís Saraiva sublinha que, para além de as Memórias evidenciarem pouca actividade, no que respeita à inclusão de artigos matemáticos, é notória uma “falta de continuidade” na sua publicação. Insiste ainda na escassez de contactos internacionais e na inexistência de uma “estratégia de longo prazo” para inserir as Memórias num contexto internacional.
Comentário: A esse respeito, acrescente-se que no início da segunda metade do século XIX é clara a intenção da Academia das Ciências de Lisboa de reatar as relações, presumidamente abaladas, com as suas congéneres europeias. A intervenção, em 1857, do vice-secretário da Academia, Latino Coelho, é disso testemunho. Lê-se em acta de Assembleia Geral: “[…]as nossas relações com os corpos scientificos estrangeiros, por tanto tempo interrompidas, ainda depois da reformação da Academia [em 1851], haviam começado a renascer durante a gerencia d'elle vice-secretario […] a incerteza e confusão dos antigos registos da academia, […] a interrupção larga de toda a comunicação com as academias e institutos estrangeiros, datando as ultimas remessas dos nossos livros e memorias do anno de 1843, haviam tornado mui difficil a prompta renovação das relações academicas inter-nacionais.”: Academia das Ciências de Lisboa, Livro da Secretaria 31B [Actas das Assembleias Gerais], 21 de Dezembro de 1857.

Mesmo a nível nacional, a importância das Memórias foi diminuindo ao longo do século XIX. Não obstante, o prestígio, reconhecimento ou impacto das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa deve ser avaliado mediante os condicionalismos sociais e políticos vivenciados em Portugal. É desse modo que Luís Saraiva enfatiza a “importância crucial no contexto científico português” dessa publicação, realçando que durante meio século foi o único periódico português onde os matemáticos portugueses puderam divulgar as suas investigações.

Science as Labor

Sessão de 27 Novembro 2008, Júlia Gaspar.

LEFÈVRE, Wolfgang,
"Science as Labor",
Perspectives on Science, vol. 13, no. 2, 2005, p. 194-225


O termo tecnociência é usado com dois sentidos, um mais alargado outro mais restrito. O primeiro refere-se ao emaranhado intricado da produção científica e económica que se desenvolveu a partir do século dezanove e caracteriza hoje o processo social da produção no Ocidente. A produção da alta tecnologia moderna não se baseia só na ciência mas assenta na ciência que se tornou possível graças ao desenvolvimento destes processos científicos avançados, ou seja, é por seu lado suportada pela produção de base científica.

No sentido restrito tecnociência designa ciências que são um verdadeiro híbrido representado pelos processos de produção científicos e normais. Ao mesmo tempo que incluem os processos tecnológicos inerentes à respectiva ciência experimental produzem literalmente os objectos que estudam. São exemplos a química moderna e campos da física como a física das partículas.

O texto procura resposta para duas interrogações. O carácter tecnocientífico da ciência é óbvio no caso das ciências que produzem materialmente os objectos que investigam, mas poderá este carácter estender-se, de forma generalizada a toda a ciência?

Será possível detectarmos novos traços da sua prática, das suas pré-condições, das suas dinâmicas e talvez até da sua dimensão cognitiva, se olharmos para a ciência em geral à luz da nossa experiência actual de penetração mútua de ciência, tecnologia e produção normal?

A resposta do autor pressupõe concepções que transcendem as habitualmente aplicadas nos estudos sociais da ciência em que o estudo da sociologia está divorciado do estudo da economia. Por isso Lefèvre recorre aos termos e às categorias da teoria sociológica de Karl Marx. Assim, a ciência é considerada como factor do processo de produção que se tornou tão importante como o acesso a matérias-primas, contudo a ciência tem condicionamentos específicos. As descobertas e inovações não podem ser previstas ou planeadas, a ciência tem um carácter aberto, e os custos elevados que a ciência comporta retiraram o seu controle da iniciativa privada, mais interessada em empreendimentos lucrativos. Assim tornou-se indispensável um gigantesco sector de ciência e tecnologia, tanto nos países de iniciativa privada como nos de economia socialista. Como resultado de interacções complexas de longa duração entre todos os parceiros sociais envolvidos – comissões políticas constitucionais, agências de serviço público, forças armadas, associações de companhias comerciais e industriais, assim como instituições para a ciência e tecnologia tradicionais ou recém-formadas – foi desenvolvido e continua a desenvolver-se um sistema intricado de locais de investigação e formação científica formalmente independentes, semi-dependentes e controladas directamente. Estas redes institucionais representam a forma social da ciência e constituem uma parte do processo social do trabalho.

A relação entre ciência e produção económica caracteriza-se por uma ligação estreita, não de sujeição simples da primeira em relação à segunda, mas antes uma dependência, em que a esfera da produção económica é uma condição essencial para a existência da ciência. Mas esta relação entre os benefícios dos dois lados é assimétrica no período com início na época moderna até à Revolução Industrial. Esta Revolução foi um ponto de viragem. Entre 1500 e 1800 a contribuição da ciência para o desenvolvimento da produção económica era modesta, embora vários sectores pudessem usufruir do conhecimento adquirido cientificamente. Com a Revolução Industrial a assimetria da relação entre ciência e produção económica começa a ser lentamente substituída por uma relação material complexa de mútua dependência, embora a esfera da produção económica tivesse mais importância para a ciência como fonte rica de materiais, instrumentação, inspiração, conhecimento e experiências. Também foram importantes as relações do comércio internacional, com particular incidência nos sistemas coloniais construídos desde o século dezasseis pelas nações europeias. Dos processos artesanais até à high-tech a dependência da ciência da produção económica tornou-se cada vez mais profunda. Em contrapartida a base científica da produção industrial também se alargou.

Trading Zone: Coordinating Action and Belief

Sessão de 12 Março 2008, Maria do Mar Gago.

Peter Galison,

"Trading Zone: Coordinating Action and Belief", in The science studies reader, Mario Biagioli (ed.), New York, Routledge, 1999, p 137-160

Neste artigo, Peter Galison começa por fazer uma análise das duas correntes que no século XX influenciaram a nossa forma de ver a construção do conhecimento científico (137-142p.) e depois propõe o seu, fundado no conceito de “coordenação local” (142-145p.). O seu modelo defende que a unidade da ciência é mantida não pela hegemonia de uma prática sobre a outra – como tentaram explicar as correntes anti-realistas do século XX – mas por um processo contingente de “coordenação local” que torna possível a troca de objectos de conhecimento entre as diferentes práticas. Para Galison, tanto os positivistas lógicos como os anti-positivistas pecam por tentar explicar a unidade da ciência de um ponto privilegiado (de acordo com uma “master narrative” como se diria em crítica literária). Se para os primeiros esse ponto era a “base de observação”, para os segundos era um “paradigma” teórico ou “esquema conceptual” (142p.). Ora, para Galison, não há “master narrative”. Cada tradição (teoria, experiência e intrumentação) tem vida própria.

Sendo assim, a construção do conhecimento científico faz-se quasi-autonomamente segundo as três práticas científicas. Estas funcionam como “sub-culturas” dentro da física, com diferentes ritmos de mudança, referências de demonstração, culturas de instituição, etc. Por vezes um processo de “coordenação local” faz com que estas sejam interceptadas por “zonas de troca”, gerando-se um complexo de pidgins e crioulos que torna possível a troca de determinados objectos de conhecimento. O exemplo histórico é o Rad Lab, um laboratório para produção de radares que na segunda grande guerra obrigou engenheiros e físicos teóricos a trabalhar no mesmo espaço (149p.). Por força da autoridade, por força de uma ideologia, foram criadas as condições locais ideais para a instituição duma trading zone.

Não é por acaso que Galison designa as três práticas de fazer ciência de sub-culturas. O termo “cultura” remete para a antropologia e para uma das suas categorias fundamentais: grupos de indivíduos que partilham entre si hábitos, comportamentos, valores e crenças. O objectivo de Galison pôr termo à ideia da “plasticidade” das tradições, que pretende reduzir o processo de troca a um “protocolo de linguagem” ou à “tradução” entre elas. Exactamente, porque constituem em si pequenas culturas, quando há trocas, não há “tradução” mas sim a possibilidade de “encaixe”, ou seja, a possibilidade de “coordenar as acções e as crenças” de cada uma das sub-culturas envolvidas.

Esta ideia de “encaixe” versus “tradução”, de “coordenação local” versus “homogeneização” é o coração da tese de Galison. Esta espécie de pragmatismo do “local” está presente em várias obras de Galison. É disso exemplo a tese sobre Einstein e a importância do seu emprego nas patentes para a descoberta da teoria da relatividade (Os Relógios de Einstein e os Mapas de Poincaré, 2005), ou a recente investigação sobre a relação entre a história da arquitectura e a história da ciência (The Architecture of Science, 1999).

Knowing and doing in the sixteenth century: what were instruments for?

Sessão de 30 de Janeiro de 2007, Samuel Gessner.

Jim Bennett,
"Knowing and doing in the sixteenth century: what were instruments for?",
The British Journal for the History of Science, vol. 36, no. 2, 2003, p. 129-150

Bennett propõe a ideia de estudar os instrumentos do século XVI como objectos que requerem a colaboração dos conservadores (curators) de colecções de instrumentos e dos historiadores de ciência (p. 131). Segundo o autor, um motivo importante para esta proposta seria o seu significado para as mudanças da Revolução Científica (p. 131).

Uma primeira parte do artigo (p. 131-143) expõe uma caracterização dos instrumentos matemáticos do século XVI: esta caracterização da sua verdadeira natureza e do seu papel na cultura matemática vai-se afinando ao longo do artigo. Ela começa pela observação de que a dimensão operacional (for doing) destes instrumentos prevalece sobre a sua dimensão cognitiva (for knowing). Do ponto de vista operacional os instrumentos são concebidos para permitir a resolução de um conjunto predefinido de problemas nas várias artes matemáticas.

Na sua procura de uma caracterização, Bennett insiste que esta deve ser suficientemente abrangente para englobar todos os “produtos das diferentes artes matemáticas” (p. 139). Porquê? Porque por um lado, os livros dos práticos predicam esta coerência, e por outro lado, as carreiras de matemáticos, cosmógrafos e fabricantes de instrumentos demostram esta unidade. (O autor refere os exemplos de Regiomontano e Gemma Frísio.)

A parte cognitiva (for knowing) é mais complicada de tratar: Bennett afasta primeiro a hipótese de que os instrumentos seriam (vistos como) modelos – o que é evidente no caso da descrição do astrolábio dada na Elucidatio de Stöffler (1513). Passando à revista todos os tipos de objectos tratados como “instrumento matemático” no século XVI (mapas, diagramas móveis ou imóveis em livros, theoricae incluidos), Bennett afirma então que na “theorica” se mostra a característica cognitiva de todos os instrumentos de forma mais evidente: é desta maneira que encapsulam a relação entre matemática e o mundo (p.143).

Visto a continuidade que existe entre instrumentos de latão, madeira, cartão, papel, diagramas móveis e theoricae, Bennett levanta o problema de a base de dados Epact não incluir uma população representativa da “prática matemática” na época porque exclui geralmente os últimos tipos mencionados por razões puramente extrínsecas.

Armado desta sensibilidade relativamente à continuidade de um leque de “produtos matemáticos”, como o autor os chama, analisa então a utilização de uma theorica por William Gilbert no seu tratado De magnete (1600). Bennett mostra que no Livro 5º Gilbert elabora uma theorica para dar conta da inclinação magnética em função do lugar no globo terrestre, e como esta theorica lhe inspira, no livro 6º, o desenvolvimento de uma teoria de esferas magnéticas efusas, responsáveis para a rotação diuturna da terra. Gilbert passa portanto de um tratamento “instrumentalista” dos fenómenos, à uma atitude “realista”, da cosmografia passa à filosofia natural. Este caso constitui, consoante Bennett, também um exemplo do potencial que tinha na época o uso da theorica, além do caso bem conhecido na astronomia. Osiander propõe uma interpretação “instrumentalista” do De revolutionibus (1543) de Copérnico embora o autor ter uma atitude realista; ou mais tarde Kepler insiste no estatuto “realista” dos hipóteses na sua Astronomia nova (1609). Bennett sugere pois que este problema do estatuto da matemática em relação à filosofia natural não seria confinado ao caso astronomia/cosmologia mas que se levanta em várias ciências matemáticas (p. 143).

The great Copernican cliché

Sessão de 19 de Dezembro de 2007, Henrique Leitão (resumo SG)

Dennis R. Danielson,
"The great Copernican cliché",
American Journal of Physics, vol. 69, n. 10, 2001, p. 1029-1035

Danielson pretende mostrar a falsidade da ideia de que a adopção da teoria de Copernico implicou uma destituição do homem da sua posição privilegiada no universo. Começa o artigo por vários expressões desta ideia (do Agent Kay, 1997 à revista Sky & Telescope, 2000). Acrescenta mais adiante (p. 1031) o exemplo de Kline 1980, que pretende a existência do « dogma cristão » que o ser humano era o centro do universo. Demonstra primeiro que o cliché se baseia na equiparação de geocentrismo com antropocentrismo, e sublinha que na verdade uma ou outra posição são [logicamente] independentes. Lembra depois que, na imagem aristotélica e ptolemaica do mundo, a terra está no centro por ser o elemento mais grosseiro e não por « sua importância » (evitando invocar o argumento da gravidade). Cita um texto do século XII de Maimonides que exprima esta posição aristotélica e afirma que no pensamento árabe, judaico e cristão antigo « para cima » indica a dimensão do melhoramento, da importância (Capella séc. V, al-Biruni séc. X, Thomas Aquinas e Dante séc. XIII). Além disso cita Lewis 1964 dizendo que o « modelo medieval » era « antropoperiférico ».

Danielson sugere que apenas a partir do momento em que o sol é pensado ocupar o centro, este centro ganha em prestígio e cita a este propósito o próprio Copérnico. Para o mostrar cita ainda cartas de Bellarmino e Galileo (início séc. XVII). Ao mesmo tempo, Galileo continua a valorizar o « baile das estrelas » em que a terra agora participa. Danielson continua a mostrar a expressão do « antropocentrismo » em Kepler. Assim mostra que os contemporâneos e appoinates de Copérnico não associavam a deslocação da terra (e do homem) do « centro » a uma destituição de um sítio especial. Acrescente ainda um capítulo sobre a origem do « cliché », mostra que muito cedo existe também inquietação com uma terra móvel e nem sequer única talvez (Donne, Pascal, Robert Burton). Pensa que Fontenelle pode ter sido importante na criação do « cliché » porque emite a ideia que « Copérnico não tem sido muito simpático com a terra », e que « rebateu a vaidade humana ».

O autor pensa que esta reviravolta pode ser imputada à ideologia materialista moderna: permite projectar a sua própria ubris sobre uma época ultrapassada, e acertando que o estatuto especial do ser humano está baseado na sua natureza prometéica. Isto é uma tentativa de descobrir a « teleologia escondida » (p. 1034) do materialismo moderno. Finalmente, insiste que a cosmologia a partir de Copérnico não necessariamente veicula sempre a mensagem de um ser humano « insignificante ».

Free radicals in the European periphery: ‘translating’ organic chemistry from Zurich to Barcelona in the early twentieth century

Sessão de 28 Novembro 2007, Júlia Gaspar.

Agustí Nieto-Galan,
”Free radicals in the European periphery: ‘translating’ organic chemistry from Zurich to Barcelona in the early twentieth century”,
British Journal for the History of Science, vol. 37, no. 2, 2004, p. 167-191

O autor justifica este estudo pelo facto dos grupos de investigação da primeira metade do século vinte em Espanha não serem conhecidos, exceptuando o Laboratório de Investigaciones Físicas de Blas Cabrera, de José Manuel Sánchez Ron e Antoni Roca-Rosell de 1993. Com este enquadramento, um dos objectivos do artigo é fornecer dados para avaliar se, a investigação liderada por Antonio García Banús (1888-1955) satisfaz os critérios de “escola de investigação” estabelecidos por Gerald Geison em 1981 e, de que modo, este caso da periferia europeia pode contribuir para uma compreensão geral de grupos de investigação ou “escolas de investigação” contemporâneas.

Terminado o curso de química em Madrid em 1910, no ano seguinte Banús obteve uma bolsa para preparar o doutoramento em Zurique, na ETH (Eidgenössische Technische Hochschule, Escola Politécnica Federal), com Julius Schmidlin, que se tinha tornado um elo importante da nova linha de investigação, os radicais livres. Os derivados dos organometais, outro assunto a que Schmidlin se dedicou, também interessou Banús. Esta actividade teve como resultado: artigos em co-autoria com Schmidlin publicados na Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft; obtenção em 1912 do PhD, na Faculdade de Ciências da Universidade Central de Madrid sobre compostos de triarilmetil; admissão na Deutsche chemische Gesellschaft como membro estrangeiro.

A apropriação dos conhecimentos teve início em 1915, quando Banús foi nomeado professor de química orgânica na Faculdade de Ciências da Universidade de Barcelona. O ensino experimental que implementou deu os seus frutos logo nos anos vinte e continuaria nos anos trinta: Banús, em co-autoria com alguns discípulos, publicou os resultados da investigação nos Anales de la Sociedade Española de Física y Química em língua castelhana; os jovens iniciados na investigação em Barcelona deslocavam-se a outros centros europeus para preparar o doutoramento, a maioria na Universidade de Freiburg com Heirich Wieland, Nobel de química de 1928 e, também, em Paris, Estrasburgo, Queen’s College em Oxford, Estocolmo, ETH de Zurique, Edimburgo e Nova Iorque. A carreira universitária em algumas universidades espanholas: Barcelona, Sevilha, Salamanca, Santiago de Compostela, foi a via de profissionalização dos alunos mais dotados que se especializaram e obtiveram o doutoramento.

No início da guerra civil, em 1936, Banús deixou Barcelona mas a sua “escola de investigação” já há algum tempo tinha perdido o fulgor dos primeiros tempos, devido a dedicar cada vez mais tempo a outras actividades: compromissos institucionais e tradução de livros de divulgação e manuais.

Ao submeter o seu grupo periférico a avaliação qualitativa das 14 características propostas por Geison, Nieto-Galán esclarece como a maioria satisfaz os critérios de “escola de investigação”, sendo a 12ª, o exemplo que aponta para as que não foram satisfeitas. Relata além disso como, devido a dificuldades que foram surgindo, a cultura científica do centro passou a exercer uma força de atracção para os discípulos, deixando de actuar como uma referência para o líder. Colocado nesta posição secundária, o grupo de Banús foi moldado de forma particular conferindo-lhe “the character of an extended family with a particular scientific style” (p.189). Banús conclui que seria discutível atribuir a categoria de “escola de investigação” ao grupo de Banús, não havendo dúvida, porém, que conseguiu êxitos notáveis.