Observation in the Margins, 500–1500 / K. Park

Sessão de 4 de Novembro de 2012, book-club


"Introduction: Observation Observed" / Loraine Daston e Elizabeth Lunbeck, p. 1-9
"Introduction: Part I. Framing the History of Scientifi c Observation, 500–1800", p. 11-13
"1 Observation in the Margins, 500–1500" / Katharine Park, p. 15-44

in Lorraine Daston & Elizabeth Lunbeck eds., Histories of scientific observation, (Chicago/London: The University of Chicago Press 2011).

Introdução

Daston e Lunbeck mostram porque é oportuno escrever a história da observação científica qua "categoria epistémica" de pleno direito (p. 2) e indiciam um caminho para o fazer. Primeiro perguntam porque é que esta história ainda não foi escrita até agora: apontam para duas razões. Primeiro, a observação seria uma coisa muito óbvia, omnipresente, de forma que esta história teria que englobar a história da ciência toda (p.1). A segunda razão seria que o papel da observação (supostamente passiva) foi desvalorizado relativamente ao papel da experimentação (supostamente ativa) durante os séculos 19 e 20. (p.3-5)

Por outro lado, o estudo da "observação" já está encaminhado por vários trabalhos: em sociologia histórica (Norbert Elias) e antropologia culural (Clifford Geertz). Ele pode orientar-se nos exemplos dos trabalhos de Raymond Williams e Michel Foucault que mostraram como o contexto histórico moldava aspetos da existência e vivência humana tidos por imutáveis (o corpo, a sexualidade). Outros estudos historicizavam os sentidos (Alain Corbin). Existe também já um corpus de literatura em história da ciência sobre a história da experimentação (importantes referências da nota no. 6) que tem várias características em comum com a observação científica (p.3):
  • a observação (tal como a experimentação) é uma forma de experiência altamente artificial e disciplinada
  • ela requer (tal como a experimentação) treinar os gestos e a mente
  • ela requer (tal como a experimentação) utensílios materiais
  • ela requer (tal como a experimentação) técnicas de descrição e de visualização
  • redes de comunicação e transmissão
  • critérios consensuais (canons) de evidência
  • formas especializadas de raciocínio.
Os autores fazem em poucos traços a historicização dos pressupostos filosóficos que postulam a observação como neutra e passiva. (p. 3-6) Feito isto, a "observação" apresenta-se como um tópico apetitoso de investigação histórica ("beckoning topic of historical inquiry").

A seguir, elas esboçam ainda a estrutura e a génese (um projeto MPIWG Berlin, 2006-2008) do volume. (p. 6-8)

What is the historiography of Technology about?

Sessão de 14 de Janeiro de 2011, Ana Paula Silva

David Edgerton,
Innovation, Technology, or History: What Is the Historiography of Technology About?,
Technology and Culture
, Vol. 51 No. 2, 2010, p. 680-697

Materiais:

Einstein in Portugal

Sessão de 22 de Maio de 2009, Pedro Raposo

Elsa Mota, Paulo Crawford and Ana Simões,
"Einstein in Portugal: Eddington's expedition to Principe and the reactions of Portuguese astronomers (1917-25)",
The British Journal for the History of Science,
Published online, 2008

Memoirs of the Lisbon Academy of Sciences

Sessão de 7 de Abril de 2009, Ana Patrícia Martins

Luis Manuel Ribeiro Saraiva,
"
Mathematics in the Memoirs of the Lisbon Academy of Sciences in the 19th century",
Historia Mathematica, vol. 35, 2008, p. 302-326


O autor apresenta uma avaliação sobretudo estatística dos trabalhos matemáticos publicados, durante o século XIX, num periódico específico: as Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, editadas em três séries (Primeira série: 1797-1839; Segunda série: 1843-1856; Nova série: 1854-1903+). A vitalidade das Memórias é analisada ao nível do volume de artigos matemáticos, em comparação com os de outras áreas, das mudanças verificadas nos temas tratados, da caracterização dos seus autores e do impacto causado na comunidade matemática europeia.

A análise da produção matemática inserta nas Memórias justifica-se pelo facto de a Academia das Ciências de Lisboa ser, desde os finais do século XVIII e até 1877, a principal instituição responsável em Portugal pela publicação de periódicos científicos contendo artigos matemáticos. O ano de 1877 assinala o início de “uma nova era” para a matemática produzida no país, com a fundação do “inovador” Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas, pelo eminente matemático Francisco Gomes Teixeira.

Numa primeira secção, Luís Saraiva faz uma caracterização do estado de adiantamento das matemáticas em Portugal, no século XIX, centrando-se em dois aspectos: trabalhos matemáticos produzidos e instituições responsáveis pela promoção da matemática, através do seu ensino ou investigação. Os dados compilados por Rodolfo Guimarães na obra Les Mathématiques en Portugal au XIXe siècle, de 1900 e aumentada em 1909 (obra que, pela sua catalogação demasiado heterogénea de assuntos matemáticos, deve merecer da parte do leitor uma análise cuidada), permitem ao autor agrupar a produção nacional, distribuída por temas, em três épocas: primeira metade do século XIX, terceiro e último quartéis do mesmo século. Cita ainda instituições e publicações relevantes para o progresso das matemáticas, distribuídas apenas por três cidades do país. Em Coimbra, a Universidade e a academia científica, literária e artística Instituto de Coimbra (1852), responsável pelo periódico O Instituto. No Porto, a Academia Politécnica do Porto (1837), sucessora da Academia Real de Marinha e Comércio da Cidade do Porto. Em Lisboa, destacam-se: a Academia das Ciências de Lisboa, responsável pelas Memórias (1797) (até à década de 1850 o único periódico científico contendo artigos matemáticos) e ainda pelos periódicos Bulletin (1851), Annaes das Sciencias e Lettras (1857-58) e Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes (1866); a Escola do Exército (1837), sucedendo à Academia Real de Fortificação Artilharia e Desenho; a Escola Politécnica (1837), sob a responsabilidade do Ministério da Guerra, suprindo a Academia Real de Marinha; e a Escola Naval (1845), sucessora da Academia Real dos Guardas Marinhas. Indica também a Revista de Obras Públicas e Minas (1871) criada pela Associação dos Engenheiros Civis e, finalmente, o já mencionado Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas (1877) de Gomes Teixeira.

A reduzida produção matemática verificada na primeira metade do século XIX (época em que os militares são o “grupo dominante” entre os matemáticos), o ligeiro aumento a partir da década de cinquenta, seguido de um extraordinário acréscimo no último quartel do século, devem ser avaliados não só pela dinâmica das instituições/periódicos em causa mas também pela conjuntura sociopolítica vivida em Portugal: destaquem-se a saída da Família Real para o Brasil (1807); as sucessivas invasões francesas (1807-1811) e ocupação do território nacional, e de Espanha, por França e Inglaterra; a revolução liberal (1820); a revolução de Setembro de 1836; seguidos do movimento de regeneração (décadas de 1850 e 1860).

No cerne do artigo, o autor aborda a dinâmica da publicação matemática das Memórias, evidenciando a percentagem de textos sobre matemática por oposição a outras áreas e descreve o decrescente dinamismo desse periódico ao longo do século XIX. Destaca o reduzido número de autores de trabalhos matemáticos, a quase inexistência de uma política de continuidade nas suas publicações e descreve as mudanças no seu perfil.

Fundada bem mais tarde do que as suas congéneres europeias, torna-se pertinente avaliar a intencionalidade da Academia das Ciências de Lisboa em inserir as Memórias na rede internacional, já estabelecida, de publicações sobre matemática superior. No que respeita ao posicionamento das Memórias no contexto europeu, Luís Saraiva argumenta que parece não ter existido semelhante política por parte da Academia, atendendo, por um lado, à pouca acessibilidade da língua portuguesa na qual são escritos a quase totalidade dos artigos (menos de 5% são escritos em língua estrangeira) e, por outro, à ausência de indícios de contactos científicos activos com autores estrangeiros (apenas três escreveram nas Memórias durante o período analisado, de 106 anos). Conclui também ser praticamente inexistente qualquer influência dos escritos de matemáticos portugueses na comunidade matemática internacional. Para tal, reporta-se à publicação ou correspondência de matemáticos portugueses com periódicos científicos estrangeiros (como excepções refere Garção Stockler e Manuel Pedro de Melo) e a alguns periódicos fundados no estrangeiro por portugueses que se viram forçados no século XIX a sair do país (destacando O Investigador Portuguez em Inglaterra).

Pese embora este cenário, indicando uma “incapacidade” dos matemáticos portugueses em “participar activamente” na comunidade matemática internacional, o autor recorre a artigos das Memórias para defender a tese de que alguns deles conheciam os desenvolvimentos actuais da matemática europeia, no que respeita aos assuntos que investigavam. Descreve sucintamente essas cinco memórias contendo resultados avançados mas que ficaram desconhecidas dos matemáticos de outros países: José Monteiro da Rocha sobre a determinação de órbitas (tomo II, 1799, p. 402-479); José M. Dantas Pereira estuda a velocidade de convergência de séries (tomo II, 1799, p. 168-186); Francisco Simões Margiochi sobre critérios de convergência (tomo III, parte II, 1814, p. 27-60); João Evangelista Torriani prova que seguindo o método de Wronski equações de grau superior a três não se podem resolver (“Memória premiada [...]”, tomo VI, parte I, 1819, p. 33-50); Francisco Simões Margiochi sobre a resolução de equações de segundo, terceiro e quarto grau sem segundo termo (tomo VII, 1821, p. 317-349); e Daniel Augusto da Silva com dois trabalhos, um sobre a “rotação das forças [...]” (tomo III, parte I, 1851, p. 61-231) e outro a respeito da resolução de “sistemas de congruências lineares [...]” (nova série, tomo I, parte I, 1854, p. 1-163).

O autor fornece também pormenores sobre os sucessivos estatutos da Academia que determinam os procedimentos para a avaliação dos escritos a incluir nas Memórias.

Estabelece uma breve comparação com o estado do progresso das matemáticas no século XIX em Espanha, muito embora não se refira às publicações da Academia das Ciências de Madrid, por não existir qualquer estudo publicado a esse respeito. Conclui que, apesar de o desenvolvimento das matemáticas nos dois países ter sido semelhante, houve pouco intercâmbio entre as suas comunidades de matemáticos, excepção feita ao último quartel do século XIX. Para tal contribuíram, não as Academias das Ciências de Lisboa e de Madrid mas os matemáticos Gomes Teixeira e García Galdeano com os periódicos por si fundados (Jornal de Sciencias Mathematicas e Astronomicas e El Progreso Matemático).

Em jeito de conclusão, Luís Saraiva sublinha que, para além de as Memórias evidenciarem pouca actividade, no que respeita à inclusão de artigos matemáticos, é notória uma “falta de continuidade” na sua publicação. Insiste ainda na escassez de contactos internacionais e na inexistência de uma “estratégia de longo prazo” para inserir as Memórias num contexto internacional.
Comentário: A esse respeito, acrescente-se que no início da segunda metade do século XIX é clara a intenção da Academia das Ciências de Lisboa de reatar as relações, presumidamente abaladas, com as suas congéneres europeias. A intervenção, em 1857, do vice-secretário da Academia, Latino Coelho, é disso testemunho. Lê-se em acta de Assembleia Geral: “[…]as nossas relações com os corpos scientificos estrangeiros, por tanto tempo interrompidas, ainda depois da reformação da Academia [em 1851], haviam começado a renascer durante a gerencia d'elle vice-secretario […] a incerteza e confusão dos antigos registos da academia, […] a interrupção larga de toda a comunicação com as academias e institutos estrangeiros, datando as ultimas remessas dos nossos livros e memorias do anno de 1843, haviam tornado mui difficil a prompta renovação das relações academicas inter-nacionais.”: Academia das Ciências de Lisboa, Livro da Secretaria 31B [Actas das Assembleias Gerais], 21 de Dezembro de 1857.

Mesmo a nível nacional, a importância das Memórias foi diminuindo ao longo do século XIX. Não obstante, o prestígio, reconhecimento ou impacto das Memórias da Academia das Ciências de Lisboa deve ser avaliado mediante os condicionalismos sociais e políticos vivenciados em Portugal. É desse modo que Luís Saraiva enfatiza a “importância crucial no contexto científico português” dessa publicação, realçando que durante meio século foi o único periódico português onde os matemáticos portugueses puderam divulgar as suas investigações.

Science as Labor

Sessão de 27 Novembro 2008, Júlia Gaspar.

LEFÈVRE, Wolfgang,
"Science as Labor",
Perspectives on Science, vol. 13, no. 2, 2005, p. 194-225


O termo tecnociência é usado com dois sentidos, um mais alargado outro mais restrito. O primeiro refere-se ao emaranhado intricado da produção científica e económica que se desenvolveu a partir do século dezanove e caracteriza hoje o processo social da produção no Ocidente. A produção da alta tecnologia moderna não se baseia só na ciência mas assenta na ciência que se tornou possível graças ao desenvolvimento destes processos científicos avançados, ou seja, é por seu lado suportada pela produção de base científica.

No sentido restrito tecnociência designa ciências que são um verdadeiro híbrido representado pelos processos de produção científicos e normais. Ao mesmo tempo que incluem os processos tecnológicos inerentes à respectiva ciência experimental produzem literalmente os objectos que estudam. São exemplos a química moderna e campos da física como a física das partículas.

O texto procura resposta para duas interrogações. O carácter tecnocientífico da ciência é óbvio no caso das ciências que produzem materialmente os objectos que investigam, mas poderá este carácter estender-se, de forma generalizada a toda a ciência?

Será possível detectarmos novos traços da sua prática, das suas pré-condições, das suas dinâmicas e talvez até da sua dimensão cognitiva, se olharmos para a ciência em geral à luz da nossa experiência actual de penetração mútua de ciência, tecnologia e produção normal?

A resposta do autor pressupõe concepções que transcendem as habitualmente aplicadas nos estudos sociais da ciência em que o estudo da sociologia está divorciado do estudo da economia. Por isso Lefèvre recorre aos termos e às categorias da teoria sociológica de Karl Marx. Assim, a ciência é considerada como factor do processo de produção que se tornou tão importante como o acesso a matérias-primas, contudo a ciência tem condicionamentos específicos. As descobertas e inovações não podem ser previstas ou planeadas, a ciência tem um carácter aberto, e os custos elevados que a ciência comporta retiraram o seu controle da iniciativa privada, mais interessada em empreendimentos lucrativos. Assim tornou-se indispensável um gigantesco sector de ciência e tecnologia, tanto nos países de iniciativa privada como nos de economia socialista. Como resultado de interacções complexas de longa duração entre todos os parceiros sociais envolvidos – comissões políticas constitucionais, agências de serviço público, forças armadas, associações de companhias comerciais e industriais, assim como instituições para a ciência e tecnologia tradicionais ou recém-formadas – foi desenvolvido e continua a desenvolver-se um sistema intricado de locais de investigação e formação científica formalmente independentes, semi-dependentes e controladas directamente. Estas redes institucionais representam a forma social da ciência e constituem uma parte do processo social do trabalho.

A relação entre ciência e produção económica caracteriza-se por uma ligação estreita, não de sujeição simples da primeira em relação à segunda, mas antes uma dependência, em que a esfera da produção económica é uma condição essencial para a existência da ciência. Mas esta relação entre os benefícios dos dois lados é assimétrica no período com início na época moderna até à Revolução Industrial. Esta Revolução foi um ponto de viragem. Entre 1500 e 1800 a contribuição da ciência para o desenvolvimento da produção económica era modesta, embora vários sectores pudessem usufruir do conhecimento adquirido cientificamente. Com a Revolução Industrial a assimetria da relação entre ciência e produção económica começa a ser lentamente substituída por uma relação material complexa de mútua dependência, embora a esfera da produção económica tivesse mais importância para a ciência como fonte rica de materiais, instrumentação, inspiração, conhecimento e experiências. Também foram importantes as relações do comércio internacional, com particular incidência nos sistemas coloniais construídos desde o século dezasseis pelas nações europeias. Dos processos artesanais até à high-tech a dependência da ciência da produção económica tornou-se cada vez mais profunda. Em contrapartida a base científica da produção industrial também se alargou.

Trading Zone: Coordinating Action and Belief

Sessão de 12 Março 2008, Maria do Mar Gago.

Peter Galison,

"Trading Zone: Coordinating Action and Belief", in The science studies reader, Mario Biagioli (ed.), New York, Routledge, 1999, p 137-160

Neste artigo, Peter Galison começa por fazer uma análise das duas correntes que no século XX influenciaram a nossa forma de ver a construção do conhecimento científico (137-142p.) e depois propõe o seu, fundado no conceito de “coordenação local” (142-145p.). O seu modelo defende que a unidade da ciência é mantida não pela hegemonia de uma prática sobre a outra – como tentaram explicar as correntes anti-realistas do século XX – mas por um processo contingente de “coordenação local” que torna possível a troca de objectos de conhecimento entre as diferentes práticas. Para Galison, tanto os positivistas lógicos como os anti-positivistas pecam por tentar explicar a unidade da ciência de um ponto privilegiado (de acordo com uma “master narrative” como se diria em crítica literária). Se para os primeiros esse ponto era a “base de observação”, para os segundos era um “paradigma” teórico ou “esquema conceptual” (142p.). Ora, para Galison, não há “master narrative”. Cada tradição (teoria, experiência e intrumentação) tem vida própria.

Sendo assim, a construção do conhecimento científico faz-se quasi-autonomamente segundo as três práticas científicas. Estas funcionam como “sub-culturas” dentro da física, com diferentes ritmos de mudança, referências de demonstração, culturas de instituição, etc. Por vezes um processo de “coordenação local” faz com que estas sejam interceptadas por “zonas de troca”, gerando-se um complexo de pidgins e crioulos que torna possível a troca de determinados objectos de conhecimento. O exemplo histórico é o Rad Lab, um laboratório para produção de radares que na segunda grande guerra obrigou engenheiros e físicos teóricos a trabalhar no mesmo espaço (149p.). Por força da autoridade, por força de uma ideologia, foram criadas as condições locais ideais para a instituição duma trading zone.

Não é por acaso que Galison designa as três práticas de fazer ciência de sub-culturas. O termo “cultura” remete para a antropologia e para uma das suas categorias fundamentais: grupos de indivíduos que partilham entre si hábitos, comportamentos, valores e crenças. O objectivo de Galison pôr termo à ideia da “plasticidade” das tradições, que pretende reduzir o processo de troca a um “protocolo de linguagem” ou à “tradução” entre elas. Exactamente, porque constituem em si pequenas culturas, quando há trocas, não há “tradução” mas sim a possibilidade de “encaixe”, ou seja, a possibilidade de “coordenar as acções e as crenças” de cada uma das sub-culturas envolvidas.

Esta ideia de “encaixe” versus “tradução”, de “coordenação local” versus “homogeneização” é o coração da tese de Galison. Esta espécie de pragmatismo do “local” está presente em várias obras de Galison. É disso exemplo a tese sobre Einstein e a importância do seu emprego nas patentes para a descoberta da teoria da relatividade (Os Relógios de Einstein e os Mapas de Poincaré, 2005), ou a recente investigação sobre a relação entre a história da arquitectura e a história da ciência (The Architecture of Science, 1999).

Knowing and doing in the sixteenth century: what were instruments for?

Sessão de 30 de Janeiro de 2007, Samuel Gessner.

Jim Bennett,
"Knowing and doing in the sixteenth century: what were instruments for?",
The British Journal for the History of Science, vol. 36, no. 2, 2003, p. 129-150

Bennett propõe a ideia de estudar os instrumentos do século XVI como objectos que requerem a colaboração dos conservadores (curators) de colecções de instrumentos e dos historiadores de ciência (p. 131). Segundo o autor, um motivo importante para esta proposta seria o seu significado para as mudanças da Revolução Científica (p. 131).

Uma primeira parte do artigo (p. 131-143) expõe uma caracterização dos instrumentos matemáticos do século XVI: esta caracterização da sua verdadeira natureza e do seu papel na cultura matemática vai-se afinando ao longo do artigo. Ela começa pela observação de que a dimensão operacional (for doing) destes instrumentos prevalece sobre a sua dimensão cognitiva (for knowing). Do ponto de vista operacional os instrumentos são concebidos para permitir a resolução de um conjunto predefinido de problemas nas várias artes matemáticas.

Na sua procura de uma caracterização, Bennett insiste que esta deve ser suficientemente abrangente para englobar todos os “produtos das diferentes artes matemáticas” (p. 139). Porquê? Porque por um lado, os livros dos práticos predicam esta coerência, e por outro lado, as carreiras de matemáticos, cosmógrafos e fabricantes de instrumentos demostram esta unidade. (O autor refere os exemplos de Regiomontano e Gemma Frísio.)

A parte cognitiva (for knowing) é mais complicada de tratar: Bennett afasta primeiro a hipótese de que os instrumentos seriam (vistos como) modelos – o que é evidente no caso da descrição do astrolábio dada na Elucidatio de Stöffler (1513). Passando à revista todos os tipos de objectos tratados como “instrumento matemático” no século XVI (mapas, diagramas móveis ou imóveis em livros, theoricae incluidos), Bennett afirma então que na “theorica” se mostra a característica cognitiva de todos os instrumentos de forma mais evidente: é desta maneira que encapsulam a relação entre matemática e o mundo (p.143).

Visto a continuidade que existe entre instrumentos de latão, madeira, cartão, papel, diagramas móveis e theoricae, Bennett levanta o problema de a base de dados Epact não incluir uma população representativa da “prática matemática” na época porque exclui geralmente os últimos tipos mencionados por razões puramente extrínsecas.

Armado desta sensibilidade relativamente à continuidade de um leque de “produtos matemáticos”, como o autor os chama, analisa então a utilização de uma theorica por William Gilbert no seu tratado De magnete (1600). Bennett mostra que no Livro 5º Gilbert elabora uma theorica para dar conta da inclinação magnética em função do lugar no globo terrestre, e como esta theorica lhe inspira, no livro 6º, o desenvolvimento de uma teoria de esferas magnéticas efusas, responsáveis para a rotação diuturna da terra. Gilbert passa portanto de um tratamento “instrumentalista” dos fenómenos, à uma atitude “realista”, da cosmografia passa à filosofia natural. Este caso constitui, consoante Bennett, também um exemplo do potencial que tinha na época o uso da theorica, além do caso bem conhecido na astronomia. Osiander propõe uma interpretação “instrumentalista” do De revolutionibus (1543) de Copérnico embora o autor ter uma atitude realista; ou mais tarde Kepler insiste no estatuto “realista” dos hipóteses na sua Astronomia nova (1609). Bennett sugere pois que este problema do estatuto da matemática em relação à filosofia natural não seria confinado ao caso astronomia/cosmologia mas que se levanta em várias ciências matemáticas (p. 143).

The great Copernican cliché

Sessão de 19 de Dezembro de 2007, Henrique Leitão (resumo SG)

Dennis R. Danielson,
"The great Copernican cliché",
American Journal of Physics, vol. 69, n. 10, 2001, p. 1029-1035

Danielson pretende mostrar a falsidade da ideia de que a adopção da teoria de Copernico implicou uma destituição do homem da sua posição privilegiada no universo. Começa o artigo por vários expressões desta ideia (do Agent Kay, 1997 à revista Sky & Telescope, 2000). Acrescenta mais adiante (p. 1031) o exemplo de Kline 1980, que pretende a existência do « dogma cristão » que o ser humano era o centro do universo. Demonstra primeiro que o cliché se baseia na equiparação de geocentrismo com antropocentrismo, e sublinha que na verdade uma ou outra posição são [logicamente] independentes. Lembra depois que, na imagem aristotélica e ptolemaica do mundo, a terra está no centro por ser o elemento mais grosseiro e não por « sua importância » (evitando invocar o argumento da gravidade). Cita um texto do século XII de Maimonides que exprima esta posição aristotélica e afirma que no pensamento árabe, judaico e cristão antigo « para cima » indica a dimensão do melhoramento, da importância (Capella séc. V, al-Biruni séc. X, Thomas Aquinas e Dante séc. XIII). Além disso cita Lewis 1964 dizendo que o « modelo medieval » era « antropoperiférico ».

Danielson sugere que apenas a partir do momento em que o sol é pensado ocupar o centro, este centro ganha em prestígio e cita a este propósito o próprio Copérnico. Para o mostrar cita ainda cartas de Bellarmino e Galileo (início séc. XVII). Ao mesmo tempo, Galileo continua a valorizar o « baile das estrelas » em que a terra agora participa. Danielson continua a mostrar a expressão do « antropocentrismo » em Kepler. Assim mostra que os contemporâneos e appoinates de Copérnico não associavam a deslocação da terra (e do homem) do « centro » a uma destituição de um sítio especial. Acrescente ainda um capítulo sobre a origem do « cliché », mostra que muito cedo existe também inquietação com uma terra móvel e nem sequer única talvez (Donne, Pascal, Robert Burton). Pensa que Fontenelle pode ter sido importante na criação do « cliché » porque emite a ideia que « Copérnico não tem sido muito simpático com a terra », e que « rebateu a vaidade humana ».

O autor pensa que esta reviravolta pode ser imputada à ideologia materialista moderna: permite projectar a sua própria ubris sobre uma época ultrapassada, e acertando que o estatuto especial do ser humano está baseado na sua natureza prometéica. Isto é uma tentativa de descobrir a « teleologia escondida » (p. 1034) do materialismo moderno. Finalmente, insiste que a cosmologia a partir de Copérnico não necessariamente veicula sempre a mensagem de um ser humano « insignificante ».

Free radicals in the European periphery: ‘translating’ organic chemistry from Zurich to Barcelona in the early twentieth century

Sessão de 28 Novembro 2007, Júlia Gaspar.

Agustí Nieto-Galan,
”Free radicals in the European periphery: ‘translating’ organic chemistry from Zurich to Barcelona in the early twentieth century”,
British Journal for the History of Science, vol. 37, no. 2, 2004, p. 167-191

O autor justifica este estudo pelo facto dos grupos de investigação da primeira metade do século vinte em Espanha não serem conhecidos, exceptuando o Laboratório de Investigaciones Físicas de Blas Cabrera, de José Manuel Sánchez Ron e Antoni Roca-Rosell de 1993. Com este enquadramento, um dos objectivos do artigo é fornecer dados para avaliar se, a investigação liderada por Antonio García Banús (1888-1955) satisfaz os critérios de “escola de investigação” estabelecidos por Gerald Geison em 1981 e, de que modo, este caso da periferia europeia pode contribuir para uma compreensão geral de grupos de investigação ou “escolas de investigação” contemporâneas.

Terminado o curso de química em Madrid em 1910, no ano seguinte Banús obteve uma bolsa para preparar o doutoramento em Zurique, na ETH (Eidgenössische Technische Hochschule, Escola Politécnica Federal), com Julius Schmidlin, que se tinha tornado um elo importante da nova linha de investigação, os radicais livres. Os derivados dos organometais, outro assunto a que Schmidlin se dedicou, também interessou Banús. Esta actividade teve como resultado: artigos em co-autoria com Schmidlin publicados na Berichte der deutschen chemischen Gesellschaft; obtenção em 1912 do PhD, na Faculdade de Ciências da Universidade Central de Madrid sobre compostos de triarilmetil; admissão na Deutsche chemische Gesellschaft como membro estrangeiro.

A apropriação dos conhecimentos teve início em 1915, quando Banús foi nomeado professor de química orgânica na Faculdade de Ciências da Universidade de Barcelona. O ensino experimental que implementou deu os seus frutos logo nos anos vinte e continuaria nos anos trinta: Banús, em co-autoria com alguns discípulos, publicou os resultados da investigação nos Anales de la Sociedade Española de Física y Química em língua castelhana; os jovens iniciados na investigação em Barcelona deslocavam-se a outros centros europeus para preparar o doutoramento, a maioria na Universidade de Freiburg com Heirich Wieland, Nobel de química de 1928 e, também, em Paris, Estrasburgo, Queen’s College em Oxford, Estocolmo, ETH de Zurique, Edimburgo e Nova Iorque. A carreira universitária em algumas universidades espanholas: Barcelona, Sevilha, Salamanca, Santiago de Compostela, foi a via de profissionalização dos alunos mais dotados que se especializaram e obtiveram o doutoramento.

No início da guerra civil, em 1936, Banús deixou Barcelona mas a sua “escola de investigação” já há algum tempo tinha perdido o fulgor dos primeiros tempos, devido a dedicar cada vez mais tempo a outras actividades: compromissos institucionais e tradução de livros de divulgação e manuais.

Ao submeter o seu grupo periférico a avaliação qualitativa das 14 características propostas por Geison, Nieto-Galán esclarece como a maioria satisfaz os critérios de “escola de investigação”, sendo a 12ª, o exemplo que aponta para as que não foram satisfeitas. Relata além disso como, devido a dificuldades que foram surgindo, a cultura científica do centro passou a exercer uma força de atracção para os discípulos, deixando de actuar como uma referência para o líder. Colocado nesta posição secundária, o grupo de Banús foi moldado de forma particular conferindo-lhe “the character of an extended family with a particular scientific style” (p.189). Banús conclui que seria discutível atribuir a categoria de “escola de investigação” ao grupo de Banús, não havendo dúvida, porém, que conseguiu êxitos notáveis.



Whigs and Stories: Herbert Butterfield and the Historiography of Science

Sessão de 24 Outubro 2007, Bruno Almeida.

Jardine, Nick,
"Whigs and Stories: Herbert Butterfield and the Historiography of Science", History of Science, vol. 41, part 2, number 132, June 2003, p. 125-140

Este artigo de Nick Jardine é dedicado a Herbert Butterfield. Na verdade dizer isto não é dizer tudo. O autor tem um duplo objectivo: por um lado voltar a reflectir sobre as ideias de Butterfield acerca da interpretação whiggish da HC e por outro fazer um paralelo, se possível, para a história da ciência tal como é praticada nos dias de hoje.

O artigo começa com uma confissão do próprio autor em relação ao seu precário conhecimento passado da obra de Butterfield: uma das suas principais noções era de que tinha sido Butterfield a introduzir, no seu livro The Whig interpretation of history (1931), o termo whig para caracterizar um tipo de visão histórica anacronista e com franca apetência para glorificar os actores históricos. Outra das informações sobre o importante historiador britânico era sobre a sua posição (veiculada no livro The origins of modern science) em relação ao papel da (designada) revolução científica dos séculos XVI e XVII ao declara que esta “eclipsava todos os acontecimentos desde o aparecimento do cristianismo”. Na posse de pouca informação sobre os escritos e ideias de Butterfield esta era, desde logo, para Jardine uma posição presentista. Outras questões intrigaram Jardine: o porquê de os termos introduzidos por Butterfield (whig, internalista, positivista ou triunfalista) terem pouco eco na comunidade dos historiadores ditos normais ou generalistas e o porquê de, nos anos 70 e 80, esta visão da análise histórica ter tido um novo fôlego por parte dos historiadores da ciência. E por ultimo, teriam as ideias e observações de Butterfield sentido para os HsC de hoje em dia? (Confesso que Jardine sabia e já se tinha questionado muito mais sobre o assunto do que eu).

Num primeiro estudo, confessadamente superficial, Jardine reparou que poucos historiadores mainstream da altura passaram a usar as categorias de Butterfield. Além do mais, Butterfield parecia não ter notado que muitos dos problemas da analise também eram válidos para os escritos de tendência mais conservadora e/ou católica. De facto, Jardine também constatou que os termos whig e whiggish já eram usados na historiografia geral, cerca de 4 décadas antes de Butterfield, para caracterizar uma tendência histórica de heroificação das instituições inglesas e do progresso que conduziu ao seu sistema parlamentar. Tudo isto fazia já parte de uma certa tradição analítica que deixava clara a diferença entra uma história presentista e uma outra, por assim, dizer “histórica”. Termos como anacronismo eram já usados para caracterizar textos que localizavam as coisas fora do seu lugar histórico ou que tratavam os actores históricos prolepticamente.

No que diz respeito à história da ciência, Jardine não detectou continuação das ideias de Butterfield nas 3 décadas que seguiram a publicação da WIH. Um dos primeiros ecos foi detectado por volta de 1961 numa resposta de Guerlac a um comentário de Laslett a propósito de uma comunicação do próprio Guerlac. Guerlac, um historiador da ciência, teria apelado contra a especialização da história da ciência e a favor da sua integração no corpo de investigação histórica geral. Laslett, um historiador social e demográfico, iria mais longe questionando a validade dos estudos histórico-cientificos com base na não existência de uma clara definição de ciência aquando da sua “criação” no século XVII e da falta de consciência dos próprios praticantes em relação à sua actividade na época. Deste modo a própria categorização de uma actividade como “cientifica” seria desde o princípio uma categorização anacronista – anacronismo conceptual.

Em meados dos anos 70, era comum encontrar a terminologia ligada a Butterfield e outras relacionadas em textos dos historiadores da ciência. Esta nova lufada estava, na opinião de Jardine, com a necessidade de credibilizar os estudos historiográficos ligados à ciência e à consolidação e profissionalização da disciplina: era separar o trigo do joio. Mas, como Jardine mostra, Butterfield, ao contrário dos “novos” HsC não estava minimamente preocupado com o uso da palavra ciência para caracterizar a actividade dos Galileus, Kepleres, etc. Por isso nas décadas de 70 e 80 os HsC criticavam a analise whig ligada ao anacronismo conceptual aplicado às narrativas de progresso. Pode até dizer-se que se gerou uma febre que exagerou os ataques às liberdades linguísticas que tendiam a associar disciplinas específicas aos seus heróis fundadores – algo que Jardine acaba por não condenar apesar de sugerir que a acontecer seja com o devido equilíbrio e bom senso.

2. O trabalho que Butterfield desenvolveu no WIH levanta uma série de problemas historiográficos. No segundo ponto deste artigo, o autor vai apresentar de uma maneira mais aprofundada, as características das ideias de Butterfield. Segundo Jardine, seguindo Butterfield: “Acima de tudo os historiadores deviam estudar o passado como um fim em si, procurando entender e “ressuscitar” as gentes do passado e os seus contributos. Na verdade, o historiador deveria ter a capacidade de entender estes agentes melhor do que eles próprios se entendiam, ao investigar as maneiras pelas quais os seus pensamentos foram inconscientemente condicionados pelas circunstâncias e ao explorar as “imprevistas” consequências do seu trabalho. Além disto, o historiador não deveria exercer papel de juiz do passado mas sim funcionar como uma espécie de mediador entre passado e presente, como uma testemunha acreditada”. A ideia basilar parecia clara: Butterfield aspirava a uma “História total” da civilização e para tal exigia um papel mais relevante para a Historia da Ciência. Assim, o primeiro passo a dar num estudo histórico da ciência é reconhecer e estabelecer a distância entre passado e presente (isto deve ser um principio universal). No seguimento, impõe-se um respeito absoluto pelas fontes e pela sua análise rigorosa. E, uma vez atingido o rigor, o historiador deveria apelar à sua imaginação, visões (insights) e elasticidade mental (pergunto se isto não são características subjectivas e assim presentistas, já que dependem de um observador no presente).

3. Aqui, Jardine examina alguns problemas apontados por Butterfield à interpretação whig da história da ciência. O primeiro diz respeito às relações entre a investigação histórica e o que é conhecido como história geral e é visto por Jardine como uma chave para entender Butterfield no WIH. Butterfield acentuava aqui a importância pedagógica da história generalista, o que para ele queria dizer um tipo de história que abrangia períodos vastos e assuntos por tópicos – uma espécie de big picture. Neste âmbito poderia enquadrar-se a interpretação de tendências whig já que esta se baseava em análises selectivas e criteriosas de personagens e situações.

Apesar das suas ideias concretas, alguns trabalhos posteriores de Butterfield foram acusados, eles próprios, de inconsistência e de conter passagens exemplares de historia whig: nomeadamente no período durante a II grande guerra, ao celebrar a aliança inglesa com a história. Na análise de Jardine, esta inconsistência tem pouco fundamento no que diz respeito às suas ideias sobre os métodos de fazer história. Como exemplo, no seu trabalho The englishman and his history, Butterfield destaca o contributo whig para uma certa maneira de ser inglesa no que respeita à moderação em politica ao mesmo tempo que compromete uma historiografia moderna – isto é, o que neste livro era importante enfatizar é a finalidade da análise histórica e não os seus métodos. Na verdade, a critica de Butterfield à historiografia whig não negava a importância do progresso mas sim a linha de análise histórica que o vê como uma manifestação social linear.

O segundo problema tem exactamente a ver com o reconhecimento do progresso em história. Uma observação interessante diz: “A história não é o estudo das origens; é mais é mais uma análise de todas as interposições pelas quais o passado vem ao presente.” E, claro está, são estas mediações que são propícias a ser interpretadas de maneira whig: vendo por todo lado obstáculos ao progresso só ultrapassados por indivíduos e instituições talhadas como heróicas. Quanto aos factos que Butterfield considera como originadores de transições sobressaem as intersecções entre adversários, ao contrario das interpretação whig que só considera a acção dos progressistas sobre os inimigos do progresso. Butterfield também vai um pouco além das visões de carácter um pouco mais sociológico, como as visões marxistas, afirmando que nem tudo depende da motivação humana, por si só um fenómeno complexo. A sua sugestão passa pela concentração do historiador no que ele chama, “momentos pivot” e “detalhes significativos”.

O último dos problemas tem a ver com “os limites da história enquanto estudo e particularmente com a tentativa dos whig de lhe dar uma finalidade que ela própria não tem”. Butterfield sugere que mal o historiador ponha de lado as categorias whig e comece a apreciar a complexidade e “acaso” históricos (lembro aqui que Butterfield assentava muito da sua formação pessoal na acção da divina providencia), será possível ver-nos e aos nossos preconceitos espelhados na história que fazemos. No entanto, Butterfield nunca sugere a possibilidade de descartar totalmente os nossos preconceitos no interesse de uma análise desapaixonada do passado. Mesmo estes erros crassos, que são parte integrante da personalidade do historiador, têm o seu lado positivo já que motivam a perscrutação do passado e os estudos históricos. Na interpretação do autor, Butterfield via a história como um “arte” na qual as operações cruciais interpretação, selecção e narração eram uma questão de aptidão e não um procedimento regrado ou dogmático.

4. Jardine advoga que, obviamente, muito do que Butterfield defendeu no passado, principalmente no trabalho de 1931, pode hoje ser considerado datado e sem sentido. Para Jardine a maior excentricidade é a obsessão de Butterfeild com a acção da "Divina Providência", fruto, muito possivelmente, da sua formação pessoal. Jardine revela que o interesse de ler o socrático professor Butterfield reside na facilidade com que ele problematiza as assumpções tácitas que estão por detrás das várias práticas históricas e afirma que não adianta ler Butterfield como um livro de receitas de como conseguir a boa análise historiográfica. Mas a leitura que Jardine fez dos problemas identificados por Butterfield tem bastante eco nos nossos dias. Se não veja-se: o primeiro dos problemas de Butterfield mantém-se ainda actual na questão de se é legitimo apontar baterias de estudos às big pictures do desenvolvimento científico. A este propósito a passagem de Secord revela um desfasamento entre as tendências historiográficas actuais e a imagem pública da disciplina. Revela também que apesar de todo o esforço de destruição da maneira presentista de ver a história se estabeleceu um ciclo de auto-alimentação já que há ainda muitos estudos dedicados a criticar estas visões.

Em relação às ideias de Butterfield das transições históricas e à versão whig desta dinâmica, Jardine sugere que o foco deve recair sobre as mudanças que se dão na própria problemática científica ao longo da história, sendo assim possível apresentar a big picture e ultrapassar a divisão externalismo/internalismo.

Para nós estudantes e futuros profissionais da disciplina a ideia de não ser anacrónico, presentista ou whig, é-nos (ou deveria ser) incutida desde o princípio – o HC deve fugir disto como diabo da cruz. Mas, curiosamente, Jardine sugere que uma total ignorância das ferramentas científicas do presente quando se analisa o passado conduziria a uma paralisação historiográfica (questão para discutir). Jardine afirma que uma lição deve ser retirada do trabalho de Butterfield: discernimento em relação ao presentismo. Isto é, um pouco como tudo na vida, a analise histórica presentista não deve ser evitada a todo o custo mas sim equilibrada a todo o custo.

Em relação ao 3º problema de Butterfield, Jardine sugere que não há que usar a ideia de que tudo faz parte de um plano universal e divino para manter o cepticismo e distância histórica. Por outro lado é de admirar a posição de Butterfield ao defender o papel inevitável das paixões e preconceitos na interpretação histórica. Jardine assume que a questão está em fazer-se um bom uso da teoria de analise historiográfica sem enfatizar demasiadamente as diferenças humanas ou cair em estudos culturais duvidosos.

Por fim, surge a questão da postura moral do historiador. Muitos dos HsC de hoje preferem adoptar uma posição quase insensível de modo a não só facilitar mas de alguma maneira legitimar a sua própria investigação. Mas, ao contrário do que se supõe das ideias de Butterfield, Jardine lembra a sua forte visão moralista da história. Ao contrário da visão complacente da corrente whig, Butterfield defendia uma análise critica ao próprio presente e aos próprios praticantes da HC e esta é, na minha opinião, e penso que irá ser por muitos anos uma ideia chave da disciplina, talvez mesmo uma das suas maiores conquistas.